A recordação não tem apenas que ser
exata; tem que ser também feliz; é preciso que o aroma do vivido esteja
preservado, antes de selar-se a garrafa da recordação. Tal como a uva não deve
ser pisada em qualquer altura, tal como o tempo que faz no momento de esmagá-la
tem grande influência no vinho, também o que foi vivido não está em qualquer
momento ou em qualquer circunstância pronto para ser recordado ou pronto para
dar entrada na interioridade da recordação.
Recordar não é de modo algum o mesmo que
lembrar. Por exemplo, alguém pode lembrar-se muito bem de um acontecimento, até
ao mais ínfimo pormenor, sem contudo dele ter propriamente recordação. A
memória é apenas uma condição transitória. Por intermédio da memória o vivido
apresenta-se à consagração da recordação.
A diferença é reconhecível logo nas
diferentes idades da vida. O ancião perde a memória, que aliás é a primeira
capacidade a perder-se. Contudo, o ancião tem em si algo de poético; de acordo
com a representação popular ele é profeta, é divinamente inspirado. A
recordação é afinal também a sua melhor força, a sua consolação: consola-o com
esse alcance da visão poética.
A infância, pelo contrário, possui em
grau elevado a memória e a facilidade de apreensão, mas não tem o dom da
recordação. Em vez de dizer-se «a idade não esquece o que a juventude aprende»,
poder-se-ia talvez dizer: «o que a criança retém na memória, recorda-se o
ancião». Os óculos do velho são feitos para ver ao perto. Se na juventude é
preciso usar óculos, as lentes servem para ver ao longe, pois que à juventude
falta a força da recordação, que consiste em afastar, em pôr à distância. Mas a
recordação feliz da velhice tanto quanto a feliz capacidade de apreensão da
criança são dom da natureza, uma graça que concede a sua preferência aos dois
períodos mais desprotegidos da vida, que contudo, em certo sentido, são também
os mais felizes. Mas é também por isso que a recordação, tal como a memória, é
por vezes apenas detentora de casualidades.