quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

LEMBRAR OU RECORDAR



A recordação não tem apenas que ser exata; tem que ser também feliz; é preciso que o aroma do vivido esteja preservado, antes de selar-se a garrafa da recordação. Tal como a uva não deve ser pisada em qualquer altura, tal como o tempo que faz no momento de esmagá-la tem grande influência no vinho, também o que foi vivido não está em qualquer momento ou em qualquer circunstância pronto para ser recordado ou pronto para dar entrada na interioridade da recordação.
Recordar não é de modo algum o mesmo que lembrar. Por exemplo, alguém pode lembrar-se muito bem de um acontecimento, até ao mais ínfimo pormenor, sem contudo dele ter propriamente recordação. A memória é apenas uma condição transitória. Por intermédio da memória o vivido apresenta-se à consagração da recordação.

A diferença é reconhecível logo nas diferentes idades da vida. O ancião perde a memória, que aliás é a primeira capacidade a perder-se. Contudo, o ancião tem em si algo de poético; de acordo com a representação popular ele é profeta, é divinamente inspirado. A recordação é afinal também a sua melhor força, a sua consolação: consola-o com esse alcance da visão poética.

A infância, pelo contrário, possui em grau elevado a memória e a facilidade de apreensão, mas não tem o dom da recordação. Em vez de dizer-se «a idade não esquece o que a juventude aprende», poder-se-ia talvez dizer: «o que a criança retém na memória, recorda-se o ancião». Os óculos do velho são feitos para ver ao perto. Se na juventude é preciso usar óculos, as lentes servem para ver ao longe, pois que à juventude falta a força da recordação, que consiste em afastar, em pôr à distância. Mas a recordação feliz da velhice tanto quanto a feliz capacidade de apreensão da criança são dom da natureza, uma graça que concede a sua preferência aos dois períodos mais desprotegidos da vida, que contudo, em certo sentido, são também os mais felizes. Mas é também por isso que a recordação, tal como a memória, é por vezes apenas detentora de casualidades.


Soren Kierkegaard, in 'In Vino Veritas' http://www.citador.pt/textos/a/soren-kierkegaard

A INVEJA


                                                            








A Inveja é uma Admiração que se Dissimula

A inveja é uma admiração que se dissimula. O admirador que sente a impossibilidade de ser feliz cedendo à sua admiração, toma o partido de invejar. Usa então duma linguagem diferente, segundo a qual o que no fundo admira deixa de ter importância, não é mais do que patetice insípida, extravagância. A admiração é um abandono de nós próprios penetrado de felicidade, a inveja, uma reivindicação infeliz do eu.


Soren Kierkegaard, in "O Desespero Humano"

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Nenhum Amor é Menos Ridículo que Outro

Temos, pois, que ao amor corresponde o amável, e que este é inexplicável. Concebe-se a coisa, mas dela não se pode dar razão; assim também é que de maneira incompreensível o amor se apodera da sua presa. Se, de tempos a tempos, os homens caíssem por terra e morressem subitamente, ou entrassem em convulsões violentas mas inexplicáveis, quem é que não sofreria a angústia? No entanto, é assim que o amor intervém na vida, com a diferença de que ninguém receia por isso, visto que os amantes encaram tal acontecimento como se esperassem a suprema felicidade. Ninguém receia por isso, toda a gente ri afinal, porque o trágico e o cômico estão em perpétua correspondência. Conversais hoje com um homem; parece-vos que ele se encontra em estado normal; mas amanhã ouvi-lo-eis falar uma linguagem metafórica, vê-lo-eis exprimir-se com gestos muito singulares: é sabido, está apaixonado. Se o amor tivesse por expressão equivalente «amar qualquer pessoa, a primeira que se encontra», compreender-se-ia a impossibilidade de apresentar melhor definição; mas já que a fórmula é muito diferente, «amar uma só pessoa, a única no mundo», parece que tal ato de diferenciação deve provir de motivos profundos.
Sim, deve necessariamente implicar uma dialética de razões, e quem não as quisesse ouvir ou não as quisesse expor, ganharia mais em desculpar-se com a inoportuna extensão do discurso do que em alegar a falência total de explicações.
Ora a verdade é que o amante não pode explicar nada, não sabe explicar nada. Viu centenas de mulheres; deixou talvez passar muitos anos sem experimentar o amor; e um dia, de repente, vê a sua mulher, a única, a Catarina.
Isto é ridículo. Sim, é cómico que tão grande força que há-de transformar e embelezar a vida inteira - o amor - nem sequer seja como o grão de mostarda donde deverá surgir uma grande árvore, que seja menos do que isso, que, em última análise, se reduza a um quase nada. Sim, é cômico que do amor não se possa apresentar um só critério prévio, por exemplo a idade em que se produz tal fenômeno  que da escolha da única mulher no mundo não se possa dar a mínima razão, que se haja escrito que «Adão não elegeu Eva, porque não teve possibilidade de a distinguir entre as mulheres».
Não será igualmente cômica a explicação apresentada pelos amantes? Ou melhor, essa explicação não servirá para acentuar ainda mais o aspecto cômico  Os amantes dizem que o amor os cega, e depois de dizerem isso é que tentam iluminar o fenômeno  Se um homem entrasse numa câmara escura para ir lá buscar um objecto qualquer, e se respondesse «não vale a pena, a coisa não tem importância , a quem lhe dissesse que procuraria melhor se levasse consigo uma luz, eu compreenderia muito bem a atitude desse homem. Mas se esse mesmo homem me chamasse à parte para em grande mistério me confiar que ia buscar uma coisa importantíssima, e que por isso mesmo tinha de a procurar às cegas - como poderia a minha pobre cabeça de mortal seguir a subtileza de tão desconcertante linguagem! Evidentemente que não lhe riria na cara, para não ofender; mas, assim que ele voltasse as costas, não poderia mais conter a vontade de rir.

(...) Se me entrego à hilaridade, estou muito longe de querer ofender alguém. Desprezo, porém, esses loucos, persuadidos de que o amor deles está tão completamente justificado que podem de bom grado mofar dos outros amantes; pois, uma vez que o amor se furta a qualquer explicação, todos os amantes se tornam igualmente ridículos.


Soren Kierkegaard, in "O Banquete" (Discurso do Mancebo, sem experiência no amor)

O Irracional no Amor


Se é ridículo beijar uma mulher feia, também é ridículo dar um beijo a uma beleza. A presunção de que amando de uma certa maneira se tem o direito de rir do vizinho que tem outra maneira de amar, não vale mais do que a arrogância de certo meio social. Tal soberba não põe ninguém ao abrigo do cômico universal, porque todos os homens se encontram na impossibilidade de explicar a praxe a que se submetem, a qual pretende ter um alcance universal, pretende significar que os amantes querem pertencer um ao outro por toda a eternidade, e, o que mais divertido é, pretende também convencê-los de que hão de cumprir fielmente o juramento.

Que um homem rico, muito bem sentado na sua poltrona, acene com a cabeça, ou volte a cara para a direita e para a esquerda, ou bata fortemente com um pé no chão, e que, uma vez perguntado pela razão de tais atos, me responda: «não sei; apeteceu-me de repente; foi um movimento involuntário», compreendo isso muito bem. Mas se ele me respondesse o que costumam responder os amantes, quando lhes pedem que expliquem os seus gestos e as suas atitudes, se me dissesse que em tais atos consistia a sua maior felicidade, como é que eu poderia impedir-me de ver o ridículo de tal explicação - tal como o exemplo que há pouco dei; se bem que diferente, é certo -, enquanto tal homem não se resolvesse a pôr termo à minha hilaridade, confessando que esses gestos não tinham significação alguma. Num repente, com efeito, a contradição, que é a base do cômico  desaparece; porque não há nada ridículo em que uma coisa destituída de sentido seja reconhecida como tal, mas é grotesco atribuir-lhe um alcance universal. Em relação ao involuntário, a contradição reaparece: não é possível admitir o involuntário num ente racional e livre. 

Soren Kierkegaard, in "O Banquete" (Discurso do Mancebo, sem experiência no amor)

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Memória vs Recordação


 As Armas da Juventude e da Velhice

Recordar-se não é o mesmo que lembrar-se; não são de maneira nenhuma idênticos. A gente pode muito bem lembrar-se de um evento, rememorá-lo com todos os pormenores, sem por isso dele ter a recordação. A memória não é mais do que uma condição transitória da recordação: ela permite ao vivido que se apresente para consagrar a recordação. Esta distinção torna-se manifesta ao exame das diversas idades da vida. O velho perde a memória, que geralmente é de todas as faculdades a primeira a desaparecer. No entanto, o velho tem algo de poeta; a imaginação popular vê no velho um profeta, animado pelo espírito divino. Mas a recordação é a sua melhor força, a consolação que os sustenta, porque lhe dá a visão distante, a visão de poeta. Ao invés, o moço possui a memória em alto grau, usa dela com facilidade, mas falta-lhe o mínimo dom de se recordar. Em vez de dizer: «aprendido na mocidade, conservado na velhice», poderíamos propor: «memória na mocidade, recordação na velhice». Os óculos dos velhos são graduados para ver ao perto; mas o moço que tem de usar óculos, usa-os para ver ao longe; porque lhe falta o poder da recordação, que tem por efeito afastar, distanciar.

A feliz recordação do velho é, como a feliz facilidade do moço, um gracioso dom da natureza, da natureza que protege com seus cuidados maternais as duas idades da vida que mais precisam de socorro, se bem que, em certo sentido, sejam também as mais favorecidas. Mas é por isso também que a recordação, tal como a memória, muitas vezes não passa de portadora dos dados mais acidentais.
Apesar de se distinguirem por grande diferença, a recordação e a memória são por vezes tomadas uma pela outra. A recordação é efetivamente idealidade, mas como tal, implica uma responsabilidade muito maior do que a memória, que é indiferente ao ideal.

A recordação tem por fim evitar as soluções de continuidade na vida humana e dar ao homem a certeza de que a sua passagem pela terra efetua uno tenore, num só traço, num soporo, e pode exprimir-se na unidade. Assim se liberta ela da necessidade em que a língua se encontra de repassar incessantemente pelas mesmas tagarelices, para reproduzir aquelas de que a vida se encontra repleta. A condição da imortalidade do homem é que a vida dele decorra uno tenore.

Soren Kierkegaard, in "O Banquete"http://www.citador.pt/textos/a/soren-kierkegaard

sábado, 9 de março de 2013

A Existência de Deus

Deus não é um nome, mas um conceito.

A Prova da Existência de Deus

Não será um empreendimento excêntrico pretender extrair dos atos de Napoleão a prova da sua existência? Porque, se é verdade que a sua existência explica os seus atos, os seus atos não podem provar a sua existência, a menos que esta tenha já sido implicitamente posta na palavra sua. Além disso, na medida em que Napoleão não é senão um indivíduo, não existe entre os seus atos e ele relação absoluta tal que nenhum outro indivíduo seria capaz das mesmas ações: é talvez essa a razão que me impede de concluir dos atos para a existência. Com efeito, se digo que os atos são de Napoleão, então a prova é supérflua, pois que já me referi a ela; mas se ignoro o nome do seu autor, como provar pelos próprios atos que eles são efetivamente de Napoleão? Não posso ultrapassar a afirmação, inteiramente abstrata, de que procedem de um grande general, etc.

Pelo contrário, entre Deus e os seus atos existe uma relação absoluta, porque Deus não é um nome, mas um conceito, e é talvez por isso que a sua essentia involvit existentiam. Assim, os atos de Deus só Deus pode praticá-los; muito bem; mas quais são então os atos de Deus? De atos imediatos, a partir dos quais possa provar a sua existência, não vejo o menor vestígio, a menos que admita que a ação da sua sabedoria da natureza, da sua bondade ou da sua sabedoria na Providência entre pelos olhos dentro. Mas, com isto, não abro eu a porta, pelo contrário, a tentações terríveis, tentações tais que não é possível superá-las a todas? Não, de tal ordem de considerações não consigo tirar verdadeiramente a prova da existência de Deus, e, mesmo que o tentasse, jamais conseguiria levá-lo a termo, enquanto me veria forçado a viver sempre em suspenso, com o receio de que me sucedesse de repente alguma coisa tão terrível como a perda das minhas pequenas provas.

Soren Kierkegaard, in "Mitos Filosóficos"  http://www.citador.pt/textos/a/soren-kierkegaard

domingo, 3 de março de 2013

Romantismo-Idealismo do Amor


A grandiosidade do Homem depende da Mulher, mas só enquanto não a possui...

O homem deve à mulher tudo quanto fez de belo, de insigne, de espantoso, porque da mulher recebeu o entusiasmo; ela é o ser que exalta. Quantos moços imberbes, tocadores de flauta, não celebraram já o tema? E quantas pastoras ingênuas não o ouviram também? Confesso a verdade quando digo que a minha alma está isenta de inveja e cheia de gratidão para com Deus; antes quero ser homem pobre de qualidades, mas homem, do que mulher - grandeza imensurável, que encontra a sua felicidade na ilusão. Vale mais ser uma realidade, que ao menos possui uma significação precisa, do que ser uma abstração susceptível de todas as interpretações. É, pois, bem verdade: graças à mulher é que a idealidade aparece na vida; que seria do homem, sem ela? Muitos chegaram a ser gênios  heróis, e outros santos, graças às mulheres que amaram; mas nenhum homem chegou a ser gênio por graça da mulher com quem casou; por essa, quando muito, consegue o marido ser conselheiro de Estado; nenhum homem chegou a ser herói pela mulher que conquistou, porque essa apenas conseguiu que ele chegasse a general; nenhum homem chegou a ser poeta inspirado pela companheira de seus dias, porque essa apenas conseguiu que ele fosse pai; nenhum homem chegou a ser santo pela mulher que lhe foi destinada, porque esse viveu e morreu celibatário. Os homens que chegaram a ser gênios, heróis, poetas e santos cumpriram a sua missão inspirados pelas mulheres que nunca chegaram a ser deles.

Se a idealidade da mulher fosse positivamente, e não negativamente, um fator de entusiasmo, inspiratriz seria a mulher à qual o homem, casando, se unisse para toda a vida. A realidade fala-nos, porém, outra linguagem. Quero dizer que a mulher desperta, sim, o homem para a idealidade, mas só o torna criador na relação negativa que mantém com ele. Compreendidas assim as coisas, poderá efetivamente dizer-se que a mulher é inspiradora, mas a afirmação direta não passa de um paralogismo em que só a mulher casada pode acreditar. Quem ouviu alguma vez dizer que uma mulher casada tivesse conseguido fazer do marido um poeta? A mulher inspira o homem, sim, mas durante o tempo que for vivendo até a possuir. Tal é a verdade que está escondida na ilusão da poesia e da mulher.