quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Estágio Ético

Mas o que comporta essa passagem? A seriedade! O herói trágico está agora no desespero-ético, e para tal, precisamos fazer um acordo acerca desse herói, o qual denominá-lo-emos de indivíduo oposto ao imediatismo geral, aquele que com seriedade cumpre o que a moralidade ordena. Porque a moral é o divino para esse indivíduo, e por mais que falemos sobre ele, ainda permanecerá na esfera moral.
Esse pensador dinamarquês arduamente trouxe à tona o sacrifício de Abraão para tratar dos estágios existenciais, e procura mostrar que no ato das escolhas, todo o homem carrega em si essa enfermidade, mesmo o mais religioso de todos os indivíduos é portador desse mal. Contudo, o desespero de Abraão carrega em si certa beleza do ponto de vista religioso e que todo homem deve buscar essa contemplação, admiração com o intuito de alcançar o mesmo estágio existencial, desse modo afirma o filósofo que:

Quisera ter participado dessa viagem de três dias, quando Abraão, montado no seu burro, seguia com a tristeza em frente e Isaac ao lado. Quisera estar presente no instante em que Abraão, ao erguer os olhos, viu ao longe a montanha de Morija, no instante em que despediu os burros trepou a encosta, sozinho com o filho – porque estava preocupado, mas não por engenhos artifícios da imaginação, mas pelos temores do pensamento (KIERKEGAARD, 1979b: 113).

Kierkegaard retoma aqui o episódio de Abraão que ele caracteriza como “cavaleiro da fé”, porque mesmo estando possuído pela tristeza melancólica, atordoado pelos temores do pensamento, no mais profundo conhecimento de seu desespero, manteve-se crente no Paradoxo da fé com Temor. Porém, visto pelo viés da moralidade, esse cavaleiro não comporta nenhum ato heróico e não há nenhuma beleza em si e não merece que choremos sua dor, caso tivesse sacrificado Isaac. Se isto de fato ocorresse, o Indivíduo Abraão deveria, como sugere a ética, assumir sua responsabilidade diante do geral, pois a ética implica dever, ou seja, é aplicável a cada instante.

A moralidade, em si, está no geral, e a esse título é aplicável a todos. O que pode por outro lado, exprimir-se dizendo que é aplicável a cada instante. Repousa imanente em si mesma, sem nada exterior que seja seu telos sendo ela mesma telos de tudo o que lhe é exterior; e uma vez que se tenha integrado nesse exterior não vai mais além. Tomado como ser imediato, sensível e psíquico, o Indivíduo é o Indivíduo que tem seu telos no geral; a sua tarefa moral consiste em exprimir-se constantemente, em despojar-se do seu caráter individual para alcançar a generalidade. Peca o Indivíduo que reivindica a sua individualidade frente ao geral, e não pode reconciliar-se com ele senão reconhecendo-o. De cada vez que o Indivíduo, depois de ter entrado no geral, se sente inclinado a reivindicar a sua individualidade, entra numa crise da qual só poderá libertar-se pela via do arrependimento e abandonado-se,como Indivíduo, no geral (KIERKEGAARD, 1979b: 141)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A felicidade eterna prometida pelo Cristianismo

O problema objetivo consiste numa investigação acerca da verdade do Cristianismo. O problema subjetivo diz respeito à relação do indivíduo com o Cristianismo. Para pôr as coisas de forma simples: como é que eu, Johannes Climacus [Kierkegaard], posso participar da felicidade prometida pelo Cristianismo? ... Partindo do princípio de que não há problemas com as Escrituras o que se segue? Uma pessoa que antes não tinha fé passou a estar um só passo mais próximo de a ter? Não, nem um só passo. A fé não resulta da investigação científica; não tem de todo uma origem direta. Pelo contrário, nesta objetividade há a tendência para perder o interesse pessoal infinito pela paixão que é a condição da fé, o ubique et musquam no qual a fé pode brotar.

Uma pessoa que antes tinha fé ganhou algo no que respeita à sua força e poder? Não, nem de longe. Em vez disso, aquilo que ocorre é que, neste volumoso conhecimento, nesta certeza que espreita à porta da fé e ameaça devorá-la, ela está numa situação tão perigosa que precisará de esforçar-se muito, cheia de medo e a tremer, para que não caia vítima da tentação de confundir conhecimento com fé. Apesar de a fé ter tido até agora um mestre-escola eficaz na incerteza existente, teria na nova certeza o seu mais perigoso inimigo. Pois, se a paixão for eliminada, a fé deixa de existir, e a certeza e a paixão não coexistem. Quem quer que acredite que há um Deus e uma providência que tudo governa achará mais fácil preservar a sua fé, mais fácil adquirir uma coisa que é definitivamente fé e não uma ilusão, num mundo imperfeito em que a paixão é mantida viva do que num mundo absolutamente perfeito. Num tal mundo, a fé é impensável. Assumo agora o oposto, que os adversários conseguiam provar o que desejam sobre as Escrituras, com uma certeza que transcende a vontade mais ardente da hostilidade mais entusiástica e daí? Aboliram com isso o Cristianismo? De modo algum. Foi o crente lesado? De modo algum, nem um bocadinho. O adversário tornou legítimo ser liberto da responsabilidade de não ser crente? De modo algum. Lá porque estes livros não são escritos por estes autores... e não são inspirados não se segue ... que Cristo não existiu. Até agora, o crente é igualmente livre para assumi-lo. ...

Eis o ponto essencial da questão, e retorno ao caso da teologia culta. Em prol de quem é a prova procurada? A fé não precisa dela e deve até vê-la como sua inimiga. Mas quando a fé começa a sentir-se embaraçada e envergonhada, como uma donzela para quem o seu amado já não é suficiente, mas que se sente secretamente envergonhada do seu amante e tem, portanto, de pensar que há algo de notável nele quando a fé começa deste modo a perder a paixão, quando a fé começa a deixar de ser fé, então torna-se necessária uma prova para merecer o respeito do lado da descrença. ... A filosofia ensina que deve tornar-se objetiva, ao passo que o Cristianismo ensina que deve tornar-se subjetiva, isto é, tornar-se um sujeito na verdade. ...

O Cristianismo deseja intensificar a paixão ao seu mais alto grau; mas a paixão é subjetividade e não existe objetivamente. ... Pode-se presumir, então, que a tarefa de tornar-se subjetivo é a tarefa mais elevada e uma tarefa proposta a todos os seres humanos; tal como, analogamente, o prêmio mais elevado, uma felicidade eterna, existe apenas para aqueles que são subjetivos; ou melhor, passa a existir para os indivíduos que se tornam subjetivos. Quando a questão da verdade é colocada de forma objetiva, a reflexão é dirigida objetivamente para a verdade como um objeto com o qual aquele que conhece está relacionado. Contudo, a reflexão não está focada na relação, mas na questão de saber se é a verdade com a qual aquele que conhece está relacionado. Se apenas o objeto com que ele está relacionado é verdadeiro, o sujeito é considerado estar na verdade.

Quando a questão da verdade é levantada subjetivamente, a reflexão é dirigida subjetivamente para a natureza da relação individual; se apenas o modo desta relação está na verdade, o indivíduo está na verdade mesmo que ele esteja assim relacionado com o que não é verdade. Tomemos como exemplo o conhecimento de Deus. Objetivamente, a reflexão é dirigida ao problema de saber se este objeto é o Deus verdadeiro: subjetivamente, a reflexão é dirigida para a questão de saber se o indivíduo está relacionado com uma coisa de tal maneira que a sua relação é na verdade uma relação-com-Deus. ... O indivíduo existente que escolhe prosseguir o caminho objetivo entra no processo-de-aproximação completo pelo qual se tenta revelar Deus objetivamente. Mas isto é totalmente impossível, porque Deus é um sujeito e, portanto, existe para a subjetividade apenas na interioridade. A ênfase objetiva incide no QUE é dito, a ênfase subjetiva no COMO é dito. Esta distinção mantém-se mesmo no reino estético e recebe uma expressão precisa no princípio de que é em si mesmo verdade pode na boca de tal e tal pessoa tornar-se falso ... Objetivamente o interesse está focado unicamente no pensamento-conteúdo, subjetivamente na interioridade. No seu máximo este "como" interior é a paixão do infinito, e a paixão do infinito é a verdade. Mas a paixão do infinito é completa subjetividade e, assim, a subjetividade torna-se a verdade. ... Apenas na subjetividade existe determinação para procurar o fator e não o seu conteúdo, pois o seu conteúdo é precisamente ele próprio. Desta forma, a subjetividade e o seu "como" subjetivo constitui a verdade. ... Eis aqui uma tal definição de verdade: uma incerteza objetiva agarrada rapidamente num processo de apropriação da mais apaixonada interioridade é a verdade, a verdade mais elevada que um indivíduo existente pode atingir. ...

Mas a definição acima de verdade é uma expressão equivalente da fé. Sem riscos não há fé. A fé é exatamente a contradição entre a paixão infinita da interioridade individual e a incerteza objetiva. Se sou capaz de captar Deus objetivamente, não acredito, mas precisamente porque não sou capaz de fazer isto tenho de acreditar. ... Sem risco não há fé e quanto maior o risco maior a fé; quanto mais é a segurança objetiva menos é a interioridade (pois a interioridade é precisamente subjetividade), e quanto menos é a segurança objetiva mais profunda é a interioridade possível. Quando o paradoxo é em si mesmo paradoxal repele o indivíduo em virtude do seu absurdo e a paixão correspondente à interioridade é a fé. Quando Sócrates acreditou que havia um Deus, ele agarrou-se rapidamente à incerteza objetiva com toda a paixão da sua interioridade, e é justamente nesta contradição e neste risco que a fé tem as suas raízes. Agora é de forma diferente. Em vez da incerteza objetiva, há aqui uma certeza, a saber, que objetivamente é absurdo; e este absurdo, agarrado rapidamente na paixão da interioridade, é fé. A ignorância socrática é uma espécie de brincadeira genial em comparação com a seriedade perante o absurdo; e a interioridade existencial socrática é uma frivolidade grega em comparação com a enérgica gravidade da fé. Devido à sua repulsão objetiva o absurdo é precisamente a medida da intensidade da fé na interioridade. Suponha um homem que deseje adquirir a fé; deixe a comédia começar. Ele deseja ter fé, mas ele deseja também proteger-se por intermédio de uma investigação objetiva e do seu processo-de-aproximação. O que acontece? Com a ajuda do processo-de-aproximação o absurdo torna-se algo diferente; torna-se provável, torna-se progressivamente provável, torna-se extrema e enfaticamente provável. Agora ele está pronto a acreditar nisso, e ele aventura-se a afirmar para si mesmo que não acredita como os sapateiros e os alfaiates e o povo simples acredita, mas apenas após uma longa deliberação. Agora ele está pronto a acreditar nisso; e, vejam só, agora tornou-se completamente impossível acreditar nisso. Algo que seja quase provável, ou provável, ou extrema e enfaticamente provável, e algo que ele pode quase conhecer, ou tão bom como conhecer, ou extrema e enfaticamente quase conhecer, mas é impossível acreditar...

Tradução de Álvaro Nunes Søren Kierkegaard, Concluding Unscientific Postscript, traduzido a partir da tradução inglesa de David F. Swenson and Walter Lowrie (Princeton University Press, 1949 e 1961), ublicada in Howard Kahane, Thinking About Basic Beliefs, Wadsworth, Belmont, 1983, pp. 30-32.
Dia de acesso ao site: 03.05.2009
http://www.scribd.com/doc/932919/Soren-Kierkegaard-A-felicidade-eterna-prometida-pelo-Cristianismo