Temos, pois, que ao amor corresponde o amável, e que este é inexplicável.
Concebe-se a coisa, mas dela não se pode dar razão; assim também é que de
maneira incompreensível o amor se apodera da sua presa. Se, de tempos a tempos,
os homens caíssem por terra e morressem subitamente, ou entrassem em convulsões
violentas mas inexplicáveis, quem é que não sofreria a angústia? No entanto, é
assim que o amor intervém na vida, com a diferença de que ninguém receia por
isso, visto que os amantes encaram tal acontecimento como se esperassem a
suprema felicidade. Ninguém receia por isso, toda a gente ri afinal, porque o
trágico e o cômico estão em perpétua correspondência. Conversais hoje com um
homem; parece-vos que ele se encontra em estado normal; mas amanhã ouvi-lo-eis
falar uma linguagem metafórica, vê-lo-eis exprimir-se com gestos muito
singulares: é sabido, está apaixonado. Se o amor tivesse por expressão
equivalente «amar qualquer pessoa, a primeira que se encontra»,
compreender-se-ia a impossibilidade de apresentar melhor definição; mas já que
a fórmula é muito diferente, «amar uma só pessoa, a única no mundo», parece que
tal ato de diferenciação deve provir de motivos profundos.
Sim, deve necessariamente implicar uma
dialética de razões, e quem não as quisesse ouvir ou não as quisesse expor,
ganharia mais em desculpar-se com a inoportuna extensão do discurso do que em
alegar a falência total de explicações.
Ora a verdade é que o amante não pode
explicar nada, não sabe explicar nada. Viu centenas de mulheres; deixou talvez
passar muitos anos sem experimentar o amor; e um dia, de repente, vê a sua
mulher, a única, a Catarina.
Isto é ridículo. Sim, é cómico que tão
grande força que há-de transformar e embelezar a vida inteira - o amor - nem
sequer seja como o grão de mostarda donde deverá surgir uma grande árvore, que
seja menos do que isso, que, em última análise, se reduza a um quase nada. Sim,
é cômico que do amor não se possa apresentar um só critério prévio, por exemplo
a idade em que se produz tal fenômeno que da escolha da única mulher no mundo
não se possa dar a mínima razão, que se haja escrito que «Adão não elegeu Eva,
porque não teve possibilidade de a distinguir entre as mulheres».
Não será igualmente cômica a explicação
apresentada pelos amantes? Ou melhor, essa explicação não servirá para acentuar
ainda mais o aspecto cômico Os amantes dizem que o amor os cega, e depois de
dizerem isso é que tentam iluminar o fenômeno Se um homem entrasse numa câmara
escura para ir lá buscar um objecto qualquer, e se respondesse «não vale a
pena, a coisa não tem importância , a quem lhe dissesse que procuraria melhor
se levasse consigo uma luz, eu compreenderia muito bem a atitude desse homem.
Mas se esse mesmo homem me chamasse à parte para em grande mistério me confiar
que ia buscar uma coisa importantíssima, e que por isso mesmo tinha de a procurar
às cegas - como poderia a minha pobre cabeça de mortal seguir a subtileza de
tão desconcertante linguagem! Evidentemente que não lhe riria na cara, para não
ofender; mas, assim que ele voltasse as costas, não poderia mais conter a
vontade de rir.
(...) Se me entrego à hilaridade, estou
muito longe de querer ofender alguém. Desprezo, porém, esses loucos,
persuadidos de que o amor deles está tão completamente justificado que podem de
bom grado mofar dos outros amantes; pois, uma vez que o amor se furta a
qualquer explicação, todos os amantes se tornam igualmente ridículos.
Soren Kierkegaard, in "O
Banquete" (Discurso do Mancebo, sem experiência no amor)