terça-feira, 26 de julho de 2011

segunda-feira, 25 de julho de 2011

terça-feira, 19 de julho de 2011

Como superar o Desespero?


Como superar esse desespero? Seria necessária uma força: Deus, porque a Deus, justamente, tudo é possível. A relação com Deus aparece então como o meio de salvar o Indivíduo da angústia e do desespero em que sua posição na existência o coloca. No entanto, a relação com Deus nada tem de necessária, não passa também de uma relação possível. De resto, a relação com Deus, dirigida pela fé, não pode trazer qualquer certeza intelectual de libertação das incertezas da possibilidade. A fé não oferece qualquer certeza intelectual, certamente, mas oferece mais para aliviar a condição humana: ter fé é assumir os riscos que derivam das possibilidades da existência. Ora, aqui está a verdadeira escolha diante da existência: não é escolher isso ou aquilo, cair na angústia ou no desespero, mas assumir os riscos da existência pela fé ou não. A esse respeito, Kierkegaard diz que não se trata de escolher isso ou aquilo, mas escolher querer, ou seja, em primeiro lugar, assumir uma responsabilidade. De fato, se tudo é possível e as possibilidades positivas não são mais seguras que as possibilidades negativas, o Indivíduo não tem outra opção a não ser se entregar a Aquele para que tudo é possível. Consequentemente, a fé: ainda é necessário alcançar uma posição na existência em que a fé tenha sentido e importância. (CHARLES LE BLANC. 2003, p. 51-52)

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Kierkegaard e o Possível


O conceito de possibilidade é a pedra angular da construção filosófica de Kierkegaard... O “possível” de Kierkegaard não remete a um juízo sobre o devir das coisas ou o sobrevir de um estado de coisas, mas caracteriza o existir do homem. A vida não é apenas bios, que tem seu movimento próprio do nascimento à morte. A vida do homem é existência, é relação com o mundo e com os outros; é preocupação com sua sobrevivência, é antecipação e projeto, desenvolvimento de um programa que está se escrevendo, saída fora de si da vida, é essa continuidade contrariada por descontinuidades, as das escolhas que é preciso efetuar o tempo todo. O existir é contingência absoluta: o existir é não conhecer outra necessidade a não ser a das escolhas exigidas por um existir livre sem determinação. (CHARLES LE BLANC. 2003, p. 48).

Kierkegaard se opõe à redução lógica do cristianismo


Sob a influência do seu mestre e amigo Poul Moller (1794-1838), Kierkegaard protestou muito cedo contra a redução do cristianismo a um sistema dominado pela necessidade lógica. Opõe à especulação dialética da mediação a separação absoluta entre Deus e a natureza, entre o eterno e atemporal, entre o finito e o infinito, oposições absolutas a não se no momento íntimo da fé, que é a revelação de Deus no tempo. Recusa admitir que o mistério da Trindade perca sua opacidade, que encontre uma explicação objetiva no desenvolvimento dialético hegeliano. Para ele, a revelação de Deus no tempo é um paradoxo que a razão não consegue penetrar. Na linguagem de Kierkegaard, o paradoxo exprime a relação entre um espírito finito e uma verdade infinita.
            Eis portanto, em poucas palavras, alguns elementos a partir dos quais se formou, sem isso reduzir, a filosofia de Kierkegaard. O pensamento de Kierkegaard não é apenas um pensamento que se opõe, por exemplo, ao romantismo e à aplicação do hegelianismo à teologia; é um pensamento positivo que persegue seu objetivo preciso: a apropriação subjetiva da verdade e a construção do papel de testemunha da verdade que o pensador, com os riscos que isso comporta, deve assumir no “temor e tremor”. (CHARLES LE BLANC. 2003, p. 29-30).

Kierkegaard vs Igreja Luterana

Se a fé é estimulada pelo sofrimento, o homem não deve fugir dele pelas mundanidades - o divertimento de Pascal -, mas, ao contrário, deve procurá-lo como a oportunidade inesperada, concedida por Deus, de elevar sua alma até Ele. O cristão é, consequentemente, o homem do sofrimento, e o cristianismo como provação, como Paixão, é a  única via de acesso a Deus. Inelutavelmente: se Cristo é modelo da existência e se é verdade absoluta, essa verdade só pode conduzir ao sofrimento aquele que tenta se orientar por ela, que aceita de fato deixar-se desorientar por ela. A vocação do cristão é é o sofrimento, e Kierkegaard que, bem jovem, já teve sua parcela, tratará de realizá-la plenamente por toda sua vida. Foi essa concepção do cristianismo que o conduziu, pela lógica implacável de sua própria exigência, a romper com a Igreja de seu pais: para Kierkegaard, o cristianismo como interioridade só poderia opor-se ao mundo, só poderia ser-lhe heterogêneo.... Toda sua obra está a serviço de uma única coisa: esclarecer a natureza do cristianismo. (CHARLES LE BLANC, 2003, p. 22-23

sexta-feira, 3 de junho de 2011

A Relação Homem e Deus pelas categorias de Finito e Infinito




Neste terceiro ponto apontaremos algumas implicações da relação homem e Deus, e como essa relação é fundamental para entendermos o pensamento do autor quando este fala do conceito do desespero, e como esse conceito tem profunda atuação no homem. Depois de abordarmos os temas homem e Deus, nos pontos anteriores chegamos à reflexão de que o desespero leva o homem a um estado de vantagem e a um estado de imperfeição. Entendemos essa vantagem porque ela nos faz consciente de nossa superioridade ao animal. Percebemos-nos diferente do animal não só pela mera verticalidade do caminhar em pé, mas porque somos susceptíveis de desesperar. Esse desesperar serve de diferenciação; o eu se desespera porque é consciente da sua existência. O animal não tem essa consciência, portanto, não se desespera. Essa enfermidade se dá pela possibilidade de escolha que nós somos e por isso só existe no ser racional.

Sofrer de um mal desse coloca-nos acima do animal (...). A superioridade do homem sobre o animal, está pois em ser susceptível de desesperar; a do cristão sobre o homem natural, em sê-lo com consciência, assim como a sua beatitude está em poder curar- se. Assim há uma infinita vantagem em poder desesperar[1]

Porque o desespero é a consciência de que o estágio estético não confere sentido mais profundo à existência. Neste sentido, o desespero é a passagem para o estágio ético e concomitantemente para o estágio religioso, como foi o caso de Abraão. Se a superioridade do homem sobre o animal se encontra na possibilidade de desesperar, a do cristão sobre o homem natural está na consciência de possuí-lo, pois o cristão diferente do homem natural consegue pela beatitude curar-se dessa enfermidade. O desespero por si mesmo talvez não seja um estado de imperfeição, ele poderá se tornar imperfeição no imediato da negação do eu, porque essa negação representa uma fuga do real, uma tentativa de tornar a eternidade em temporalidade. Reconhecer a eternidade é adquirir o conhecimento daquilo que somos de fato, infinito e finito.      
            Partindo desses estados de vantagens e imperfeições, podemos elevar o desespero a duas categorias: o desespero virtual e o desespero real. O desespero virtual se manifesta no instante em que o eu busca atributos alheios a si. Ele se dá quando se depara com sua impotencialidade, e com isso almeja uma aniquilação de seus atributos. O homem se ver infeliz com o que tem e o que é, passando a buscar a superação de si naquilo que lhe são alheios, porque de fato o salto sobre o temporal está na aceitação de si, onde temos o desespero real. Esse real é a capacidade do reconhecimento de si, de sua grandeza e de sua miséria, de que é preciso fazer escolhas que dêem sentido à vida, mas nessas escolhas que são possibilidades de efetuação o indivíduo defronta-se consigo, passa a perceber as várias implicações que suas ações podem acarretar, nesse defrontar-se o eu pode se ver impotente frente às decisões que devem ser tomadas, mas é preciso uma superação do medo, é preciso apostar na infinitude para que sua finitude se realize, assim sua existência se concretiza no caminhar da própria existência, porque essa só terá fundamento se realmente realizar-se em sua plenitude. Essa dupla categoria se dá pela discordância da síntese que se estabelece consigo mesma.
            A discordância interna dessa síntese é nomeada de desespero, pois essa relação da discordância diz respeito a si própria, porém, não podemos intitular a síntese de discordância, mas apenas a sua possibilidade ou implicação do desespero. A síntese é entendida como possibilidade ou implicação do desespero quando ela se confronta pelas categorias que formam o homem. Essa oposição das categorias representa uma luta entre os termos, onde cada um quer se sobrepor ao outro gerando um mal estar, quando isso acontece há discordância, o desespero.
No momento em que o desesperado é inconsciente de ter um eu, essa possibilidade de ser ou não ser desesperado existe apenas na não-consciência, como afirma Kierkegaard, esse é o verdadeiro desespero. Afinal não existe o não-desespero, o que existe de mais real no homem é o desespero, mesmo que ele não tenha a consciência de possuir essa doença mortal. Essa discordância se encontra em todo homem, o que pode haver é a não consciência de possuí-la, porque essa doença, que no fundo é uma morte de si mesmo, está presente em cada um de nós, torna-se um reconhecimento de si. 
Essa doença mortal aplicada ao eterno reafirma a existência indestrutível do eu, a sua permanência na atemporalidade. Para que haja essa doença mortal, o filósofo dinamarquês afirma a necessidade da existência dessa síntese, pois caso contrário, não haveria essa angustiante e sofredora doença, e o sofrer dessa doença não seria mais do que um atributo humano, inerente a sua natureza, sendo assim, não haveria o desespero.

Seria apenas um acidente para o homem, um sofrimento como uma doença em que sossobrasse, ou, como a morte, nosso destino comum. O desespero está, portanto em nós; mas se não fossemos uma síntese, não poderíamos desesperar, e tão pouco o poderíamos se esta síntese não tivesse recebido de Deus, ao nascer, a sua firmeza.[2]

            Essa discordância (desespero) não possui maior ou menor grau, uma vez que ela sempre se apresenta com toda a sua possibilidade de ser. O primeiro ato de se desesperar tem a mesma força que o próximo ato de desesperar. Ela não é como uma doença que possui estágios mais críticos ou menos críticos. Essa discordância é sempre o mesmo desespero, sua manifestação uma vez dada se apresentará sempre a mesma. Tomemos como exemplo a queda de um corpo jogado para baixo do alto de um edifício, toda vez que jogarmos esse corpo ele provocará o mesmo efeito ao se chocar com o chão. Não há aí o menor ou o maior impacto o que há de fato é o impacto, assim pensamos que seja o desespero.

De outro modo se passam às coisas no desespero. Cada um dos seus instantes reais é redutível à sua possibilidade; a cada momento do desespero, se contrai o desespero; o presente constantemente se desvanece em passado real, a cada instante real do desespero o desesperado contém todo o passado possível como se fosse o presente.[3]

Percebermos que esse mal não possui diferenciações de graus, pelo motivo de contrair em si toda a sua potencialidade compreende-se que o homem ao estabelecer dicotomias entre o desespero cai em dois estágios, o verdadeiro e o não verdadeiro. Podemos falar do desespero verdadeiro quando o indivíduo se desespera na negação do Absoluto, porque está perante Deus e O nega. O indivíduo se coloca no lugar do Absoluto quer provar toda a existência a partir da sua própria existência, ou seja, ele atribui a si o conceito de infinitude e nega a finitude. Ao negar um dos termos trazemos à tona a discordância, estabelecê-la é contrair o desespero.
Ao conceito de desespero não-verdadeiro, pensamos que pode ser compreendido no momento em que o homem não se reconhece diante de Deus. Não é que ele negue essa Realidade, mas o eu não tem consciência dessa existência eterna. Afinal esse desespero de modo geral se dá pela possibilidade de escolhas que o homem tem, se sentindo desamparado, jogado no mundo, ele não se dá conta de sua infinitude que o sustenta, como se fosse suspendido, posto acima das impossibilidades. Vemos coisas desse tipo no cotidiano da vida. Vivemos essa possibilidade de escolhas, hora queremos isso, hora queremos aquilo, e nisso vivemos angustiados por não termos a clareza da decisão correta, por nos sentirmos desamparados, assim estamos vulneráveis a abraçar com mais facilidade essa doença do eu com toda a sua intensidade. 

Pois o que torna um homem desesperado não é a má sorte, mas é que lhe falta o eterno; desespero consiste em não ter se submetido à transformação da eternidade pelo “tu deves” do dever. O desespero, pois, não consiste na perda da pessoa amada, isso é infelicidade, dor, sofrimento, mas o desespero consiste na falta do eterno. [4]

Tendo compreendido que essa doença mortal – desespero verdadeiro e o não verdadeiro, não são causa de destruição do eu, uma vez que ele não é destrutível, que ele não termina com a morte, mas pelo contrário, perpassa a morte, continuando sua caminhada no atemporal, que faz o homem então? Tenta de forma alucinada, como que embriagado pelo ódio, negar a si. Trava uma batalha interior consigo próprio, a finitude contra a infinitude, ou seja, o desesperado quer libertar-se de si, do seu eu, anseia uma nova realidade, por isso é que Kierkegaard entende o desespero como uma doença mortal, porque o homem a todo o tempo está tentando matar seu eu para afirmar um eu imaginário, contudo, tal mortalidade implica em viver na morte. Cada vez que existe essa tentativa de morte surge uma nova afirmação do eu, provando assim a sua eternidade.

O desespero é portanto a doença mortal, esse suplício contraditório, essa enfermidade do eu: eternamente morrer, morrer sem todavia morrer, morrer a morte. Porque morrer significa que tudo está acabado, mas morrer a morte significa viver a sua morte; e vivê-la um só instante é vivê-la eternamente. Para que se morresse de desespero como de uma doença, aquilo que há de eterno em nós, no eu, deveria poder morrer, tal como o corpo morrer de doença. Ilusão!(...) Não devora a eternidade do eu, que é o seu próprio sustentáculo. [5]

            Frente ao desespero, o eu que é eterno, procura a todo instante a morte de si-próprio, ou seja, busca-se nessa realidade uma eliminação do corpo enquanto finitude do ser, como se com a morte do corpo o eu conseguisse a superação dessa enfermidade, porém, é inadmissível tal conclusão, porque ele se desprendeu da realidade finita e cai na infinitude do ser, tendo como conseqüência o eterno desespero, noutra perspectiva, deseja-se a morte de sua própria existência, o homem quer esconder sua condição de ser delimitado pelo tempo, quer esconder que seu fim é determinado por sua condição de possibilidade, por suas escolhas, e por mais que ele fuja terá a morte como fim, mas é preciso uma postura frente à realidade, não fugir dela, pois se fugimos vivemos a morte em seus instantes reais, antecipamos o seu tempo. Nesse contexto, Abraão não se propõe a tal atitude, pois para ele não há essa necessidade de fuga, enfrenta sua condição do homem, mantém sua relação consigo mesmo e com o Absoluto, ultrapassando o geral e se sacrificando por ele, mas não de forma inconsciente, ao contrário, assumindo essa possibilidade do possível.  
           
O dever absoluto pode então levar à realização do que a moral proibiria, mas de forma alguma pode incitar o cavaleiro da fé a deixar de amar. É o que mostra Abraão. No momento em que quer sacrificar Isaac, a moral diz que ele o odeia. Mas se assim é realmente, pode estar seguro de que Deus lhe não pede esse sacrifício; com efeito, Caim e Abraão não são idênticos. Este deve amar o filho com toda a sua alma; quando Deus lho pede, deve amá-lo se possível, ainda mais e é então somente que pode sacrificá-lo; porque este amor que dedica a Isaac é o que, pela sua posição paradoxal ao amor que tem por Deus, faz do seu ato um sacrifício. Mas a tribulação e a angústia do paradoxo fazem que Abraão não possa ser compreendido, de nenhuma forma, pelos homens. É somente no instante em que o seu ato está em contradição absoluta com o seu sentimento, que ele sacrifica Isaac. No entanto, é pela realidade de seu ato que pertence ao geral e, neste domínio, é e continua a ser um assassino. [6]  

Abraão supera o estado estético e ético – o desespero. Ele como qualquer outro homem, é possuidor dessa existência, transpondo o desespero para o universal. Sendo que ele não existe apenas na consciência de si, mas na existência[7], pois se fosse o contrário o homem seria desesperado quando crer-se que o fosse e deixaria de ser quando não crer-se mais. Ora, o desespero não é uma escolha entre ser ou não ser desesperado, ele é uma aceitação, um reconhecimento de sua existência, afinal nós não escolhemos possuir ou não possuir a doença mortal, necessariamente a existência do eu é desesperada, é universal. Abraão, como cavaleiro da fé, só age contra a moral, contra a proibição dos costumes de seu povo, porque é movido por outra lei, a Divina. Abraão não é irracional, pois se fosse, talvez não desse conta da necessidade de obedecer ao sacrifício de Isaac. Sua racionalidade se fundamenta na esperança de, por um ato de amor solitário, salvar a humanidade. Isaac não é só filho do absurdo, mas representa o amor ao Absurdo – Deus, para com o gênero humano. Esse solitário cavaleiro se torna realmente incompreensível por seu ato, mas perante sua fé ele é magnífico, o homem que está acima de todo o homem. Os estágios ético e o estético se perdem na imensidão do Absoluto. A moralidade pode considerá-lo um assassino. Se o sacrifício se efetua-se, seria louco, mereceria ele mesmo morrer, mas a moral se fundamenta nela mesma, inclusive ela é temporal, se dá no momento imediato, enquanto o eu de Abraão se fundamenta no estado religioso, obedece a si mesmo enquanto relação com Deus. O cavaleiro da fé, não só sobe a montanha para o sacrifício, mas essa subida representa elevar-se além do geral, e de forma incompreensível pela razão se joga no Absurdo, como uma gota d’água que se joga ao mar. Abraão não se perde na infinitude, ao contrário, se constrói uma bela relação de amor entre o finito e o infinito, o humano se diviniza e o Divino se humaniza.
 Sendo o desespero essa doença universal, é um erro pensá-la como uma exceção, porque na verdade ela é a regra. Ela é a regra porque é geral a todo o homem. Se fosse uma exceção seria uma doença psicológica. Ela se torna uma exceção apenas para o senso comum, onde se afirma ser ou não ser desesperado dependendo das circunstâncias, e se são, são apenas imediatos. O indivíduo que não se sente ou não se supõe ser desesperado, viverá a grande angústia do desespero, pois o homem que se afirma como possuidor do desespero não está longe da cura, pelo contrário, está mais próximo do que aqueles que não se aceitam ou não se julgam desesperados.
À medida que nos reconhecemos enfermos tanto mais o eu se afirma. Também com o crescer da consciência cresce a vontade, quanto maior for a vontade será o eu. Um homem sem vontade é um eu inexistente, pois à medida que aumenta a vontade no homem conseqüentemente aumentará a consciência de si próprio. Mas o que é essa vontade afinal de conta? Essa vontade é o reconhecimento que o homem tem de si como ser dialético, por essa vontade se movimenta o indivíduo, ela leva-o cada vez mais a se re-descobrir como desesperado, e a cada vez que se re-descobre, mais aumenta a consciência de si.
Quando não há esse re-descobrir-se do homem, ele corre o risco de se perder na infinidade, que é imaginária. O homem só se encontra na infinitude que é estar perante Deus, essa é a verdadeira infinitude. Já o mergulhar na infinitude ilusória é buscar a cada instante o desespero, pois, ele é dialético. A Eternidade garante ao homem “o finito que delimita e o infinito que ilimita” [8]¸ perante Deus o desespero não é informe, mas é reconhecimento de si.
O finito desesperado se dá pela carência do infinito. Esse desesperado leva uma vida temporal, construída de aparências buscando satisfazer seu ego nos louvores humanos, uma busca incessante por honrarias e glórias terrestres, uma busca pelo estético.

É por isso que ele (Abraão) me aterroriza ao mesmo tempo que suscita a minha admiração. Aquele que se renega a si próprio e se sacrifica ao dever renuncia ao finito para alcançar o infinito; e não lhe falta segurança; o herói trágico renuncia ao certo pelo mais certo, e o olhar pousa nele com confiança (...) Sofre toda a dor do herói trágico, aniquila a sua alegria terrestre, renuncia a tudo e corre ainda o risco de fechar a si próprio o caminhar da alegria sublime, tão preciosa a seus olhos e que ele (Abraão) queria conquistar a todo o preço (...) O herói trágico realiza o seu ato no momento preciso do tempo; mas no decurso do tempo realiza também uma outra ação de não menos valor: visita aquele cujo peito oprimido não pode respirar nem abafar os suspiros, aquele cuja alma se verga ao peso da tristeza, acabrunhada pelos pensamentos alimentados de lágrimas; aparece-lhe, liberta-a do triste sortilégio, corta os laços, seca as lágrimas; porque se esquece de seus próprios sofrimentos ao pensar nos alheios. [9]

A atitude do cavaleiro da fé passa pela superação do temporal para se encontrar na eternidade, ou seja, supera o possível imediato para alcançar o possível Absoluto, nisso o autor afirma que “o eu é necessidade, porque ele próprio é possível, porque deve realizar-se” [10]. O desespero do possível se dá no afastar-se da necessidade. O possível pode ou não se realizar, não há uma efetuação do eu, apenas ele é movido por desejos, angústias, esperanças. No desejo o possível nos engana, e se mostra como real, mas em seguida vem a certeza de que tudo isso que o eu esperava tornou-se apenas uma imaginação, uma criação de uma mente imaginativa, nisso o desesperado afasta-se de si próprio, se perde na sombra da ilusão. Na angústia, o espírito[11] sempre busca uma esperança, isso prova que o momento delimitado pelo tempo, o presente – o instante[12] é insatisfeito, pois a esperança representa uma busca por algo melhor, a ela buscamos porque há uma inconformidade com o presente, com a vida. Sabemos que de fato vivemos o possível, desejamos – talvez aconteça a suprassunção da angústia – eliminação, o fim do mal que pode ser eterno pelo suicídio – na esperança de que tudo se efetue, que a necessidade se co-pertença ao possível.
O homem se re-encontra na eternidade porque nesse caso há um acréscimo da consciência do eu, contudo desesperar-se do eterno implica que possuímos a idéia do eu, de que há nele a eternidade, por isso, o desesperar-se é um ganho, uma vez que quanto mais nos desesperamos no eterno mais consciência o eu assume. É por essa mesma eternidade, pela fé[13], por esse salto qualitativo que o eu supera o desespero, caindo no estágio superior da existência que é o estado religioso, fase de culminação do desenvolvimento existencial. Nesse estágio o homem alcança uma relação particular com o Absoluto onde Deus é a única fonte capaz de realizar plenamente o indivíduo.
Partimos do pressuposto de que somos necessariamente desesperados. De início era uma idéia, agora chegamos à conclusão, somos possuidores desse mal. Mas não é o caso dele ser inerente ao homem que devemos nos desesperar, pois para essa enfermidade há uma solução, nossa aposta em Deus por um salto qualitativo, a fé. Percebemos que a doença mortal, essa enfermidade da temporalidade, representa, é e está enraizada à nossa existência. Só teríamos uma possibilidade de não sermos tocados por ela, se não tivéssemos nascido, pois nem a morte pode remediá-la, a não ser no sentido do mais puro cristianismo, uma morte para o mundo, um reencontro com o Eterno. 
                                                                                                                                                                            



[1] Ibidem. P.15
[2]  Ibidem. P.16
[3]  Ibidem. P.17
[4] KIERKEGAARD. As Obras do Amor. 2005. P. 59
[5] KIERKEGAARD. Desespero a Doença Mortal. P.20
[6] KIERKEGAARD, Sören. Temor e Tremor. Trad. Maria José Marinho. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. P.154
[7] Kierkegaard sai de um homem só razão e o desnuda na sua existência, pois a razão corre o risco de formular apenas conceitos metafísicos, sem apreender o real, com isso, Kierkegaard tem a preocupação de compreender a existência junto com a razão – consciência de si.
[8] KIERKEGAARD. Desespero a Doença Mortal. P.36
[9] KIERKEGAARD. Temor e Tremor.P.145
[10] KIERKEGAARD. Desespero a Doença Mortal. P.42
[11] KIERKEGAARD, Sören. O Conceito de Angústia. Trad. João Lopes Alves. 2a.edição. Editora Presença. 1979. “A síntese de alma e corpo deve ser instituída pelo espírito, mas o espírito é o eterno e só existe, pois, quando institui também ao mesmo tempo a primeira síntese: a do temporal e do eterno”. P. 138.
[12] Ibidem. “O instante é essa coisa ambígua em que se tocam o tempo e a eternidade: tal contacto institui o conceito de temporal, em que o tempo não mais cessa de repelir a eternidade e a eternidade não mais cessa de penetrar o tempo”. P.135.
[13] KIERKEGAARD. As Obras do Amor. 2005. “Ela mantinha o segredo para si mesma, foi o segredo da fé que a salvou, tanto no tempo quanto para a eternidade. Este segredo tu podes conserva para ti mesmo, inclusive quando com franqueza confessares a tua fé; e quando exaurido jazeres no leito de enfermo sem poder mover nenhum membro, quando não puderes nem movimenta a língua, podes ter mesmo assim junto a ti este segredo”. P.45

Conceito de Deus



           
            Para Kierkegaard é Deus quem garante ao homem o sentido mais profundo de sua vida. Esse atemporal possibilita ao individuo a permanência no eterno, pois para esse filosofo é inadmissível uma realidade fundada apenas no devir. Não teríamos um sentido verdadeiro para viver, muito menos um eu para lutar. Deus entra nessa filosofia precursora do existencialismo como necessidade ontológica ao homem, é fundamental sua presença para provar a origem do sujeito e para que esse se compreenda como singular e único, que se faz a partir da sua própria história como foi citado no início deste trabalho.  
Analisando o conceito de Deus, Kierkegaard diferencia o homem pagão do homem cristão, o homem ético do homem religioso. O homem cristão compreende a morte não como termo final e sim como início para a vida, e é por isso que segundo o autor, nem o mal físico é aceito como fim absoluto, pois a vontade interior ou a fé na infinitude (Deus) garantem um recomeçar, para esse homem de fé. Esse desespero não é uma doença mortal, pois há a superação do sofrimento como porta de entrada para a felicidade eterna. Neste sentido contrapõe-se ao paganismo que compreende essa enfermidade mortal como um mal que tem seu fim na morte, não tendo após isso qualquer esperança da eternidade. Essa não-esperança no atemporal consiste no desespero mortal.
Na concepção kierkegaardiana, ao eu é impossível a morte, uma vez que o seu ser, o seu existir é composto pela síntese entre o infinito e o finito, o atemporal e o temporal, ou seja, a eternidade e a temporalidade, formando o que ele vai denominar de espírito. O espírito é o eu, que não estabelece relação com nada que lhe seja alheio, senão consigo próprio. O homem pode se destruir enquanto finitude, mas o seu espírito permanece. Se por exemplo, o homem em sua angústia e em seu sofrer se suicidar, ele não estaria livre do desespero, porque o seu espírito não seria aniquilado, pelo contrário, ele viveria a eterna angústia de ser desesperado.
Para que haja o desespero é necessário que aja a relação entre os dois termos, pois antes de ser finito ele é infinito, e ao cometer o suicídio ele nega a sua atemporalidade, nessa negação o eu persiste nessa doença mortal, por isso o autor afirma que o verdadeiro desespero é negar a sua eternidade, nesse caso Deus. Ele também afirma que “a cada momento de desespero, se contrai o desespero; o presente constantemente se desvanece em passado real, a cada instante real do desespero o desesperado contém todo o passado possível como se fosse o presente (...) em cada instante que desesperamos contraímos o desespero” [1]. Quando negamos nosso eu, sua finitude e infinitude, caímos em dois tipos de enfermidades, o desespero verdadeiro, que é negar a Deus, e o desespero ilusório, que é a construção de um mundo fundado em si, tendo-se como princípio e fim dessa construção. 
Podemos sair dessa dualidade desesperadora por um salto qualitativo. O homem da superação movido pela fé, mesmo este é desesperado, isso não quer dizer que ele seja um eterno desesperado. Kierkegaard vê o homem da superação, que se dá pelo salto qualitativo, como algo absurdo, porque diferente do homem pagão, aquele consegue manter a sua beatitude. Ele se mantém no desespero sem negar a possibilidade da superação. Quando Abraão é impelido por Deus a sacrificar Isaac, Abraão mesmo em meio ao desespero, tendo a possibilidade de negar seu Criador, sua fé lhe dá a serenidade de poder praticar o sacrifício de seu filho a Deus. Com isso, o autor, quer provar que todo indivíduo é habitado pelo desespero, contudo, só o cristão ou o homem que age pela fé é capaz de aceitar a si como desesperado, negando a força de razão. Se Abraão não se pusesse a caminho de Deus, ele seria mais um entre milhões de homens, não o chamaríamos o pai da fé, mas de louco e doente. Diríamos que esse desesperado não foi ele próprio “porque espiritualmente não tiveram um eu, um eu pelo qual tudo arriscar-se, porque estão absolutamente sem eu perante Deus (...) por muito egoístas que sejam”. [2]
Esse ato de Abraão foi fundamental para que ele funda-se a existência do seu eu. Tendo lutado contra a finitude de si, ele se lança no mais profundo conhecimento que é o conhecimento de si. Por isso ele se torna grande, se põe acima do geral porque é capaz de mergulhar no que há de mais pavoroso no homem, sua própria interioridade e nesse mergulhar ele conhece o finito e o infinito que existe em si. Esse mergulho de Abraão se dá pela categoria da necessidade e do possível, porque era preciso uma busca mais profunda de si, mesmo tendo em vista a possibilidade dela não se efetuar devido às descobertas indesejáveis do ser, assim adentramos no conceito do Deus kierkegaardiano, da necessidade e do possível. O ato do cavaleiro da fé só se efetuaria dentro dessas categorias. Quando falamos de necessário dizemos que tal fato se consolide, mas se falamos do possível não necessariamente tal desejo se conclua, mas Kierkegaard atribui a Deus essa relação, sendo assim o possível se torna Absoluto, necessariamente ele é possível.
Deus entra como o terceiro termo nessa relação da necessidade e do possível. Ao Deus Kierkegaardiano, necessariamente a Ele tudo é possível de concluir-se. Nessa dialética entre a necessidade e o possível, Kierkegaard entende que é necessário um elo entre os dois termos, porque afinal toda a sua filosofia está baseada na relação dialética, sendo assim, não podemos desfazer esse elo. No possível imediato o eu perde a si próprio, porque nele não há um salto qualitativo, já no possível Absoluto, que é Deus, esse salto qualitativo, a fé, entra como necessidade, pois ela garante o antídoto do desespero, porque se Deus fosse só necessidade não haveria esse antídoto; uma vez que necessariamente o eu seria um eterno enfermo, mas Deus é necessidade e possibilidade, com isso Deus pode a todo o momento efetuar-se com Absoluto possível. Mas algo só é possível a Deus perante o desesperado, quando este se resigna pela fé, compreendido assim como um ser de reconhecimento que sabe que o imaginário é uma ilusão e reconhece Deus como possibilidade pura de “salvação”. [3]
Quando negamos a Deus como possível Absoluto, falamos do desespero que se ignora ou a ignorância desesperada de se ter um eu, um eu eterno, que é um estado onde o homem não se conhece como espírito, mas se vê com um ser preso ao mundo da finitude, e ilimitado pela temporalidade. Esse eu interior não encontrou ainda em Deus consciência de si próprio. Para se reconhecer como um eu eterno é preciso mergulhar na infinitude de Deus. Esse Deus infinito deve possibilitar ao homem um reconhecimento de si. Parece contraditório que o homem se perca na finitude e se encontre na infinitude. Na finitude existe a perdição porque o homem busca como fim último a morte em vista da superação do desespero, mas o que ele anseia é a eternidade, então ele pode pensar o seguinte, ao morrer encontro a paz, estou livre do mal que me atormenta, mas essa busca pela morte ou essa negação de si nada mais é do que uma tentativa ilusória, uma fuga de si. Nesse estado, o eu que é ainda inconsciente, busca atribuir a si características exteriores, tudo isso na intenção de se anular para reafirmar um outro não-eu, eis seu grande mal, eternamente desesperado. No eterno o eu se re-encontra[4], pois ele se descobre como eu eterno, vendo Deus como possível Absoluto. Nessa infinitude toda a existência navega rumo a não ignorância de se ter um eu, um eu eterno. É na presença de Deus, nessa existência conjunta com esse eu atemporal que o eu dual se afirma como não sendo mais desesperado.


[1] Ibidem. P.17
[2] Ibidem. P.41
[3] O termo salvação é entendido como a superação do desespero. Tem o mesmo sentido que na perspectiva do cristianismo.
[4] O homem sempre esteve na eternidade, mas quando se depara na finitude, ele por um momento pensa que toda a sua realidade foi, é e será este momento do devir, mas lembremos que antes de sermos finito somos totalmente infinitos e isso não podemos negar. 

Conceito de Homem



Temos o intuito de fazer uma abordagem sucinta da compreensão de homem e Deus pelas categorias de finitude e infinitude na filosofia de Kierkegaard. Analisaremos primeiramente a concepção de homem. Esse indivíduo é visto a partir de sua existência, dado no concreto da realidade vivida por ele. Uma concepção voltada para um ser que se confronta com os problemas mundanos que são também os seus problemas, pois esse se dá na possibilidade de suas escolhas. Na concepção kierkegaardiana o homem é um sujeito singular, que se dá como existência, não como gênero humano, mas especialmente como homem objetivo, que se subjetiva em sua realidade efetiva. Ele não é apenas consciência de consciência, mas um ser que se confronta consigo mesmo na medida em que vai tomando consciência do seu vir-a-ser. Não é apenas um ser racional, é, sobretudo, existencial. Kierkegaard está instituindo uma nova concepção de homem que encontra ecos na concepção cristã de homem.

Em semelhante altura o Cristianismo colocou cada homem, absolutamente cada homem – pois para Cristo, tampouco como para a providência de Deus, não há nenhuma quantidade, nenhuma multidão, pois os inumeráveis estão para ele contados, são todos indivíduos; tão alto o Cristianismo colocou cada homem, para que ele não devesse prejudicar sua alma por se elevar nas diferenças da vida terrena ou por suspirar sob elas. Pois o Cristianismo não fez desaparecer as diferenças, tampouco como o próprio Cristo não quis e nem quis pedir a Deus para retirar os discípulos do mundo – o que dá no mesmo. Por isso, no Cristianismo, tampouco como no paganismo, jamais viveu um ser humano sem estar vestido ou revestido das diferenças da vida terrena, que pertencem a cada um especialmente pelo nascimento, pelo estado, pelas circunstâncias, pela cultura etc. – nenhum de nós é o homem puro. O Cristianismo é sério demais para fabular a respeito do homem puro, ele apenas quer tornar os homens puros. [1]       

sábado, 5 de fevereiro de 2011

A Angustia e o Instante

Na angústia, o espírito  sempre busca uma esperança, pois o momento delimitado pelo tempo, o presente – o instante  é insatisfeito. A esperança representa uma busca por algo melhor. A ela buscamos porque há uma inconformidade com o presente, com a própria vida de modo geral. Sabemos que de fato vivemos o possível, que desejamos – talvez aconteça a suprassunção da angústia – sua eliminação, isto é, o fim desse mal que pode ser eterno pelo suicídio. Na esperança esperamos que tudo se efetue, que a necessidade se co-pertença ao possível.  Nessa co-pertença entre a necessidade e o possível, o realizar-se do indivíduo religioso reflete-se no dado concreto da existência. Em tudo o que lhe acontece espera a possibilidade do Absoluto. Seu desespero angustiante não lhe permite em hipótese alguma que renegue o mundo, não representa uma insatisfação de indiferença com a exterioridade, mas sabe que o de-espero é o único meio de superar a melancolia de uma angústia infinita, pois nesse sofrimento o homem encontra, de forma plena, a sua interioridade.   Quando pensamos nas existências estética e ética, o sofrimento, com efeito, não é algo necessário, de modo que, o desespero não passa de uma transição para um outro momento da vida, podendo muito bem viver sem vivê-lo. Para o homem religioso, o desespero não é uma exceção, mas fator decisivo para tal estágio, pois ai revelar-se-á a sua interioridade, sua subjetividade de forma concreta, caso contrário, Abraão não teria se tornado um cavaleiro da fé.

O Cavaleiro da Fé


Abraão representa a elevação máxima das esferas anteriores à religiosa. Estágio esse, proposto pelo cristianismo a todo indivíduo de modo ímpar, percorrido como uma verdade eterna existencial. De tal forma, vivenciou essa verdade o Patriarca (Abraão), que ele alcançou a posse de uma consciência eterna, ou talvez, de uma consciência da eternidade e, assim, distanciou-se dos estetas e dos éticos. Assim sendo, ele acreditava que o existir não era um turbilhão de paixões incandescentes, efêmeras como as chuvas de verão, mas que a vida corresponde à uma eternidade paradoxal que compete a cada ser humano encontrá-la no entendimento da fé. Por meio dessa eternidade, ele, o Cavaleiro da fé, afirma a existência de um vínculo sagrado cingidor da humanidade, isto é, Deus.  

            O Cavaleiro da fé foi o maior de todos os homens, pois cada um é grande segundo o seu objeto, mas Abraão tornou-se grande porque lutou contra Deus, na sua fraqueza alcançou o impossível, desarmou a Deus, tornou-se no paradoxo da fé, o pai da fé, porque acreditou num Absurdo para ganhar sua afirmação enquanto sujeito concreto diante de uma sociedade marcada pelas tragédias e pela obediência “cega” à moralidade, por isso “Abraão foi o maior de todos: grande pela energia cuja força é fraqueza, grande pelo saber cujo segredo é loucura, pela esperança cuja forma é demência, pelo amor que é ódio a sim próprio”[1](KIERKEGAARD, 1979b, p. 118).

            Se não falarmos desse estágio pela perspectiva da fé, ficamos impossibilitados de falar qualquer coisa sobre Abraão e, mais impedidos ainda de falar sobre Deus como Paradoxo. Pela fé abandona-se a razão sistemática, o entendimento humano, deixando ainda mais a paixão paradoxal da inteligência atônita. Se pela razão estática e ética, Abraão pensasse no ato final de sua caminhada, no sacrifício de Isaac, nunca teria saído de casa, a não ser que fosse um esquizofrênico; não seria ele o eleito de Deus, mas teria sido tentado pelo próprio demônio.

            Pela fé, ele sustentou a espera em Deus. Cria no Absurdo, “tornou-se absurda a esperança, Abraão acreditou” [2], não se desesperou moralmente e esteticamente diante das incertezas, mas manteve-se de prontidão a espera do milagre, pois a própria fé é um milagre. Mesmo com o surgimento do des-espero, ele não se lamentou, reconfortou-se porque apostou que por meio de tal acontecimento poderia construir sua interioridade e, por meio dessa espera conseguiria “Adquirir a Sua Alma na Paciência”.

            Nesse contexto, Abraão não se propõe à necessidade de fuga; enfrenta sua condição do homem, mantém sua relação consigo mesmo e com o Absoluto, ultrapassando o geral e se sacrificando por ele, mas não de forma inconsciente, ao contrário, assumindo essa possibilidade do possível realizará o que a moral o proibiria, o dever absoluto. Esse dever comporta esse grau porque, segundo Kierkegaard:
           
O dever absoluto pode então levar à realização do que a moral proibiria, mas de forma alguma pode incitar o cavaleiro da fé a deixar de amar. É o que mostra Abraão. No momento em que quer sacrificar Isaac, a moral diz que ele o odeia. Mas se assim é realmente, pode estar seguro de que Deus lhe não pede esse sacrifício; com efeito, Caim e Abraão não são idênticos. Este deve amar o filho com toda a sua alma; quando Deus lho pede, deve amá-lo se possível, ainda mais e é então somente que pode sacrificá-lo; porque este amor que dedica a Isaac é o que, pela sua posição paradoxal ao amor que tem por Deus, faz do seu ato um sacrifício. Mas a tribulação e a angústia do paradoxo fazem que Abraão não possa ser compreendido, de nenhuma forma, pelos homens. É somente no instante em que o seu ato está em contradição absoluta com o seu sentimento, que ele sacrifica Isaac. No entanto, é pela realidade de seu ato que pertence ao geral e, neste domínio, é e continua a ser um assassino [3] (KIERKEGAARD, 1979b, p. 154).  

A realidade do ato do Cavaleiro da fé pertence à moralidade. É julgado como assassino – o ato de julgar é característico da moral construída por um determinado grupo social –, um transgressor do dever de amar. A multidão julga esse homem por meio das concepções sociais, dos pactos de boa convivência. Desse ponto de vista, esses modos de proceder estão corretos. Mas por traz dessa atitude abraãnica, está a discussão de Kierkegaard em compreender a Deus dentro duma concepção de historicidade do cristianismo, sobretudo, da concepção do sistema idealista alemão. Soren está reafirmando sua polêmica conta esse sistema e contra a Igreja Luterana da Dinamarca. Pelo víeis do elogio a Abraão, ele afirma que o espírito que move o homem não provém de um espírito absoluto idealista, mas da condição existencial do homem-Deus dado no instante da vida vivida.

Portanto, Abraão supera o estado estético e ético – o desespero. Ele como qualquer outro homem é possuidor dessa existência. Sendo que ele não existe apenas na consciência de si no espírito absoluto, mas é consciência na existência[4], pois se fosse o contrário o homem seria desesperado quando crer-se que o fosse e deixaria de ser quando não crer-se mais. Ora, o desespero não é uma escolha entre ser ou não ser desesperado, ele é uma aceitação, um reconhecimento de sua existência, afinal nós não escolhemos possuir ou não possuir a doença mortal, necessariamente a existência do eu é desesperada. Ele é universal.

Abraão, como Cavaleiro da fé, só age contra a moral, contra a proibição dos costumes de seu povo, porque é movido por outra lei, a Divina. Abraão não é irracional, pois se fosse, talvez não desse conta da necessidade de obedecer ao sacrifício de Isaac. Sua racionalidade se fundamenta na esperança de, por um ato de amor solitário, salvar-se do conceito de humanidade. Isaac não é só filho do absurdo, mas representa o amor ao Absurdo – Deus, para com o gênero humano.

Esse solitário Cavaleiro se torna realmente incompreensível por seu ato, mas perante sua fé ele é magnífico; o homem que está acima de todo o homem. Os estágios ético e estético se perdem na imensidão do Absoluto. A moralidade pode considerá-lo um assassino se o sacrifício fosse efetuado dentro dos parâmetros elaborados pelos estatutos do Estado. Seria Abraão um louco, mereceria ele mesmo morrer se assim agisse.  Mas a moral se fundamenta nela mesma, inclusive ela é temporal, presa ao tempo que a determina como a regra máxima que tem como caráter peculiar julgar as ações cometidas pelos indivíduos. A moral dá-se no momento imediato do ato. Ela permanece presa nos seus conceitos e no seu modo de julgar tais atos. Já o esteta o veria como um herói trágico que se tornou cômico.

O eu de Abraão se fundamenta no estágio religioso, obedece a si mesmo enquanto relação com Deus. Ele não poderia ficar subjugado ao poderio moral. Desse ponto de vista, não o teríamos compreendido como o crente provado pelo dever absoluto, portanto, seu dever de sacrificar Isaac seria relativo, e nunca poderia ser executado como fundamento do auto-conhecimento de si. Porque, o que Kierkegaard nos propõe por esse ato abraãnico é que tal atitude, enquanto relação com o Paradoxo, é pressuposto indispensável à constituição da existência humana.

Portanto, Cavaleiro da fé, não só sobe a montanha para o sacrifício, mas essa subida representa elevar-se além do geral, e de forma incompreensível pela razão estética e ética se joga na infinitude no Absurdo, afim de, alcançar a eternidade. Abraão não se perde na infinitude, ao contrário, nela constrói uma incógnita relação do ponto de vista estético e ético, pois no amor entre o finito e o infinito, o humano se diviniza e o Divino se humaniza. Sobre essa incognoscibilidade da atitude abraãnica, o autor pseudonímico, Johannes de Silentio, salienta:

É por isso que ele me aterroriza ao mesmo tempo que suscita a minha admiração. Aquele que se renega a si próprio e se sacrifica ao dever renuncia ao finito para alcançar o infinito; e não lhe falta segurança; o herói trágico renuncia ao certo pelo mais certo, e o olhar pousa nele com confiança (...). Sofre toda a dor do herói trágico, aniquila a sua alegria terrestre, renuncia a tudo e corre ainda o risco de fechar a si próprio o caminhar da alegria sublime, tão preciosa a seus olhos e que ele Abraão queria conquistar a todo o preço (...). O herói trágico realiza o seu ato no momento preciso do tempo; mas no decurso do tempo realiza também uma outra ação de não menos valor: visita aquele cujo peito oprimido não pode respirar nem abafar os suspiros, aquele cuja alma se verga ao peso da tristeza, acabrunhada pelos pensamentos alimentados de lágrimas; aparece-lhe, liberta-a do triste sortilégio, corta os laços, seca as lágrimas; porque se esquece de seus próprios sofrimentos ao pensar nos alheios [5](KIERKEGAARD, 1979b, p. 145).

A atitude do Cavaleiro da fé passa pela superação do temporal para se encontrar na eternidade, ou seja, supera o possível imediato para alcançar o possível Absoluto. A partir desse entendimento, Kierkegaard afirma que “o eu é necessidade, porque ele próprio é possível, porque deve realizar-se” [6]. O desespero do possível se dá no afastar-se da necessidade, quando o indivíduo se propõe a não se reconhecer como possibilidade. Ele nega esse movimento do ato de realizar-se no mundo. O possível pode ou não se realizar, não há uma efetuação do eu, apenas ele é movido por desejos, angústias, esperanças. No desejo o possível nos engana, e se mostra como real, mas em seguida vem a certeza de que tudo isso que o eu esperava tornou-se apenas uma imaginação, uma criação de uma psique infinitamente criadora de figura, e nisso o desesperado afasta-se de si próprio; perdendo-se na sombra da ilusão e mergulhando na angústia como um fenômeno desconhecido e estranho a si.


[1] KIERKEGAARD, Soren. Temor e Tremor. Trad. Maria José Marinho. Ed. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 118 p.
[2] Ibidem. 118 p.
[3] Ibidem.154 p.
[4] Kierkegaard sai de um homem só razão e o desnuda na sua existência, pois a razão corre o risco de formular apenas conceitos metafísicos, sem apreender o real, com isso, ele tem a preocupação de compreender a existência junto com a razão – consciência de si.
[5] KIERKEGAARD. Temor e Tremor. 1979.145 p.
[6] KIERKEGAARD, Soren.  Desespero a Doença Mortal. Trad. Ana Keil. Porto-Portugal: Ed. Rés. 1989. 42 p.