As Armas da
Juventude e da Velhice
Recordar-se não é o mesmo que lembrar-se;
não são de maneira nenhuma idênticos. A gente pode muito bem lembrar-se de um
evento, rememorá-lo com todos os pormenores, sem por isso dele ter a
recordação. A memória não é mais do que uma condição transitória da recordação:
ela permite ao vivido que se apresente para consagrar a recordação. Esta
distinção torna-se manifesta ao exame das diversas idades da vida. O velho
perde a memória, que geralmente é de todas as faculdades a primeira a
desaparecer. No entanto, o velho tem algo de poeta; a imaginação popular vê no
velho um profeta, animado pelo espírito divino. Mas a recordação é a sua melhor
força, a consolação que os sustenta, porque lhe dá a visão distante, a visão de
poeta. Ao invés, o moço possui a memória em alto grau, usa dela com facilidade,
mas falta-lhe o mínimo dom de se recordar. Em vez de dizer: «aprendido na
mocidade, conservado na velhice», poderíamos propor: «memória na mocidade,
recordação na velhice». Os óculos dos velhos são graduados para ver ao perto;
mas o moço que tem de usar óculos, usa-os para ver ao longe; porque lhe falta o
poder da recordação, que tem por efeito afastar, distanciar.
A feliz recordação do velho é, como a
feliz facilidade do moço, um gracioso dom da natureza, da natureza que protege
com seus cuidados maternais as duas idades da vida que mais precisam de
socorro, se bem que, em certo sentido, sejam também as mais favorecidas. Mas é
por isso também que a recordação, tal como a memória, muitas vezes não passa de
portadora dos dados mais acidentais.
Apesar de se distinguirem por grande
diferença, a recordação e a memória são por vezes tomadas uma pela outra. A
recordação é efetivamente idealidade, mas como tal, implica uma
responsabilidade muito maior do que a memória, que é indiferente ao ideal.
A recordação tem por fim evitar as
soluções de continuidade na vida humana e dar ao homem a certeza de que a sua
passagem pela terra efetua uno tenore, num só traço, num soporo, e pode
exprimir-se na unidade. Assim se liberta ela da necessidade em que a língua se
encontra de repassar incessantemente pelas mesmas tagarelices, para reproduzir
aquelas de que a vida se encontra repleta. A condição da imortalidade do homem
é que a vida dele decorra uno tenore.
Soren Kierkegaard, in "O Banquete" http://www.citador.pt/textos/a/soren-kierkegaard