sábado, 5 de fevereiro de 2011

A Angustia e o Instante

Na angústia, o espírito  sempre busca uma esperança, pois o momento delimitado pelo tempo, o presente – o instante  é insatisfeito. A esperança representa uma busca por algo melhor. A ela buscamos porque há uma inconformidade com o presente, com a própria vida de modo geral. Sabemos que de fato vivemos o possível, que desejamos – talvez aconteça a suprassunção da angústia – sua eliminação, isto é, o fim desse mal que pode ser eterno pelo suicídio. Na esperança esperamos que tudo se efetue, que a necessidade se co-pertença ao possível.  Nessa co-pertença entre a necessidade e o possível, o realizar-se do indivíduo religioso reflete-se no dado concreto da existência. Em tudo o que lhe acontece espera a possibilidade do Absoluto. Seu desespero angustiante não lhe permite em hipótese alguma que renegue o mundo, não representa uma insatisfação de indiferença com a exterioridade, mas sabe que o de-espero é o único meio de superar a melancolia de uma angústia infinita, pois nesse sofrimento o homem encontra, de forma plena, a sua interioridade.   Quando pensamos nas existências estética e ética, o sofrimento, com efeito, não é algo necessário, de modo que, o desespero não passa de uma transição para um outro momento da vida, podendo muito bem viver sem vivê-lo. Para o homem religioso, o desespero não é uma exceção, mas fator decisivo para tal estágio, pois ai revelar-se-á a sua interioridade, sua subjetividade de forma concreta, caso contrário, Abraão não teria se tornado um cavaleiro da fé.

O Cavaleiro da Fé


Abraão representa a elevação máxima das esferas anteriores à religiosa. Estágio esse, proposto pelo cristianismo a todo indivíduo de modo ímpar, percorrido como uma verdade eterna existencial. De tal forma, vivenciou essa verdade o Patriarca (Abraão), que ele alcançou a posse de uma consciência eterna, ou talvez, de uma consciência da eternidade e, assim, distanciou-se dos estetas e dos éticos. Assim sendo, ele acreditava que o existir não era um turbilhão de paixões incandescentes, efêmeras como as chuvas de verão, mas que a vida corresponde à uma eternidade paradoxal que compete a cada ser humano encontrá-la no entendimento da fé. Por meio dessa eternidade, ele, o Cavaleiro da fé, afirma a existência de um vínculo sagrado cingidor da humanidade, isto é, Deus.  

            O Cavaleiro da fé foi o maior de todos os homens, pois cada um é grande segundo o seu objeto, mas Abraão tornou-se grande porque lutou contra Deus, na sua fraqueza alcançou o impossível, desarmou a Deus, tornou-se no paradoxo da fé, o pai da fé, porque acreditou num Absurdo para ganhar sua afirmação enquanto sujeito concreto diante de uma sociedade marcada pelas tragédias e pela obediência “cega” à moralidade, por isso “Abraão foi o maior de todos: grande pela energia cuja força é fraqueza, grande pelo saber cujo segredo é loucura, pela esperança cuja forma é demência, pelo amor que é ódio a sim próprio”[1](KIERKEGAARD, 1979b, p. 118).

            Se não falarmos desse estágio pela perspectiva da fé, ficamos impossibilitados de falar qualquer coisa sobre Abraão e, mais impedidos ainda de falar sobre Deus como Paradoxo. Pela fé abandona-se a razão sistemática, o entendimento humano, deixando ainda mais a paixão paradoxal da inteligência atônita. Se pela razão estática e ética, Abraão pensasse no ato final de sua caminhada, no sacrifício de Isaac, nunca teria saído de casa, a não ser que fosse um esquizofrênico; não seria ele o eleito de Deus, mas teria sido tentado pelo próprio demônio.

            Pela fé, ele sustentou a espera em Deus. Cria no Absurdo, “tornou-se absurda a esperança, Abraão acreditou” [2], não se desesperou moralmente e esteticamente diante das incertezas, mas manteve-se de prontidão a espera do milagre, pois a própria fé é um milagre. Mesmo com o surgimento do des-espero, ele não se lamentou, reconfortou-se porque apostou que por meio de tal acontecimento poderia construir sua interioridade e, por meio dessa espera conseguiria “Adquirir a Sua Alma na Paciência”.

            Nesse contexto, Abraão não se propõe à necessidade de fuga; enfrenta sua condição do homem, mantém sua relação consigo mesmo e com o Absoluto, ultrapassando o geral e se sacrificando por ele, mas não de forma inconsciente, ao contrário, assumindo essa possibilidade do possível realizará o que a moral o proibiria, o dever absoluto. Esse dever comporta esse grau porque, segundo Kierkegaard:
           
O dever absoluto pode então levar à realização do que a moral proibiria, mas de forma alguma pode incitar o cavaleiro da fé a deixar de amar. É o que mostra Abraão. No momento em que quer sacrificar Isaac, a moral diz que ele o odeia. Mas se assim é realmente, pode estar seguro de que Deus lhe não pede esse sacrifício; com efeito, Caim e Abraão não são idênticos. Este deve amar o filho com toda a sua alma; quando Deus lho pede, deve amá-lo se possível, ainda mais e é então somente que pode sacrificá-lo; porque este amor que dedica a Isaac é o que, pela sua posição paradoxal ao amor que tem por Deus, faz do seu ato um sacrifício. Mas a tribulação e a angústia do paradoxo fazem que Abraão não possa ser compreendido, de nenhuma forma, pelos homens. É somente no instante em que o seu ato está em contradição absoluta com o seu sentimento, que ele sacrifica Isaac. No entanto, é pela realidade de seu ato que pertence ao geral e, neste domínio, é e continua a ser um assassino [3] (KIERKEGAARD, 1979b, p. 154).  

A realidade do ato do Cavaleiro da fé pertence à moralidade. É julgado como assassino – o ato de julgar é característico da moral construída por um determinado grupo social –, um transgressor do dever de amar. A multidão julga esse homem por meio das concepções sociais, dos pactos de boa convivência. Desse ponto de vista, esses modos de proceder estão corretos. Mas por traz dessa atitude abraãnica, está a discussão de Kierkegaard em compreender a Deus dentro duma concepção de historicidade do cristianismo, sobretudo, da concepção do sistema idealista alemão. Soren está reafirmando sua polêmica conta esse sistema e contra a Igreja Luterana da Dinamarca. Pelo víeis do elogio a Abraão, ele afirma que o espírito que move o homem não provém de um espírito absoluto idealista, mas da condição existencial do homem-Deus dado no instante da vida vivida.

Portanto, Abraão supera o estado estético e ético – o desespero. Ele como qualquer outro homem é possuidor dessa existência. Sendo que ele não existe apenas na consciência de si no espírito absoluto, mas é consciência na existência[4], pois se fosse o contrário o homem seria desesperado quando crer-se que o fosse e deixaria de ser quando não crer-se mais. Ora, o desespero não é uma escolha entre ser ou não ser desesperado, ele é uma aceitação, um reconhecimento de sua existência, afinal nós não escolhemos possuir ou não possuir a doença mortal, necessariamente a existência do eu é desesperada. Ele é universal.

Abraão, como Cavaleiro da fé, só age contra a moral, contra a proibição dos costumes de seu povo, porque é movido por outra lei, a Divina. Abraão não é irracional, pois se fosse, talvez não desse conta da necessidade de obedecer ao sacrifício de Isaac. Sua racionalidade se fundamenta na esperança de, por um ato de amor solitário, salvar-se do conceito de humanidade. Isaac não é só filho do absurdo, mas representa o amor ao Absurdo – Deus, para com o gênero humano.

Esse solitário Cavaleiro se torna realmente incompreensível por seu ato, mas perante sua fé ele é magnífico; o homem que está acima de todo o homem. Os estágios ético e estético se perdem na imensidão do Absoluto. A moralidade pode considerá-lo um assassino se o sacrifício fosse efetuado dentro dos parâmetros elaborados pelos estatutos do Estado. Seria Abraão um louco, mereceria ele mesmo morrer se assim agisse.  Mas a moral se fundamenta nela mesma, inclusive ela é temporal, presa ao tempo que a determina como a regra máxima que tem como caráter peculiar julgar as ações cometidas pelos indivíduos. A moral dá-se no momento imediato do ato. Ela permanece presa nos seus conceitos e no seu modo de julgar tais atos. Já o esteta o veria como um herói trágico que se tornou cômico.

O eu de Abraão se fundamenta no estágio religioso, obedece a si mesmo enquanto relação com Deus. Ele não poderia ficar subjugado ao poderio moral. Desse ponto de vista, não o teríamos compreendido como o crente provado pelo dever absoluto, portanto, seu dever de sacrificar Isaac seria relativo, e nunca poderia ser executado como fundamento do auto-conhecimento de si. Porque, o que Kierkegaard nos propõe por esse ato abraãnico é que tal atitude, enquanto relação com o Paradoxo, é pressuposto indispensável à constituição da existência humana.

Portanto, Cavaleiro da fé, não só sobe a montanha para o sacrifício, mas essa subida representa elevar-se além do geral, e de forma incompreensível pela razão estética e ética se joga na infinitude no Absurdo, afim de, alcançar a eternidade. Abraão não se perde na infinitude, ao contrário, nela constrói uma incógnita relação do ponto de vista estético e ético, pois no amor entre o finito e o infinito, o humano se diviniza e o Divino se humaniza. Sobre essa incognoscibilidade da atitude abraãnica, o autor pseudonímico, Johannes de Silentio, salienta:

É por isso que ele me aterroriza ao mesmo tempo que suscita a minha admiração. Aquele que se renega a si próprio e se sacrifica ao dever renuncia ao finito para alcançar o infinito; e não lhe falta segurança; o herói trágico renuncia ao certo pelo mais certo, e o olhar pousa nele com confiança (...). Sofre toda a dor do herói trágico, aniquila a sua alegria terrestre, renuncia a tudo e corre ainda o risco de fechar a si próprio o caminhar da alegria sublime, tão preciosa a seus olhos e que ele Abraão queria conquistar a todo o preço (...). O herói trágico realiza o seu ato no momento preciso do tempo; mas no decurso do tempo realiza também uma outra ação de não menos valor: visita aquele cujo peito oprimido não pode respirar nem abafar os suspiros, aquele cuja alma se verga ao peso da tristeza, acabrunhada pelos pensamentos alimentados de lágrimas; aparece-lhe, liberta-a do triste sortilégio, corta os laços, seca as lágrimas; porque se esquece de seus próprios sofrimentos ao pensar nos alheios [5](KIERKEGAARD, 1979b, p. 145).

A atitude do Cavaleiro da fé passa pela superação do temporal para se encontrar na eternidade, ou seja, supera o possível imediato para alcançar o possível Absoluto. A partir desse entendimento, Kierkegaard afirma que “o eu é necessidade, porque ele próprio é possível, porque deve realizar-se” [6]. O desespero do possível se dá no afastar-se da necessidade, quando o indivíduo se propõe a não se reconhecer como possibilidade. Ele nega esse movimento do ato de realizar-se no mundo. O possível pode ou não se realizar, não há uma efetuação do eu, apenas ele é movido por desejos, angústias, esperanças. No desejo o possível nos engana, e se mostra como real, mas em seguida vem a certeza de que tudo isso que o eu esperava tornou-se apenas uma imaginação, uma criação de uma psique infinitamente criadora de figura, e nisso o desesperado afasta-se de si próprio; perdendo-se na sombra da ilusão e mergulhando na angústia como um fenômeno desconhecido e estranho a si.


[1] KIERKEGAARD, Soren. Temor e Tremor. Trad. Maria José Marinho. Ed. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 118 p.
[2] Ibidem. 118 p.
[3] Ibidem.154 p.
[4] Kierkegaard sai de um homem só razão e o desnuda na sua existência, pois a razão corre o risco de formular apenas conceitos metafísicos, sem apreender o real, com isso, ele tem a preocupação de compreender a existência junto com a razão – consciência de si.
[5] KIERKEGAARD. Temor e Tremor. 1979.145 p.
[6] KIERKEGAARD, Soren.  Desespero a Doença Mortal. Trad. Ana Keil. Porto-Portugal: Ed. Rés. 1989. 42 p.