quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Um Cristianismo estéti e ético


Kierkegaard critica veemente esse cristianismo estético e ético. Ele acredita que tais cristãos não se comportam como deveria agir o verdadeiro homem crístico, por isso, não obedecem ao verdadeiro Deus. Partindo dessa crítica aos cristãos de aparência, Soren procura trazer à tona seu entendimento sobre Deus e de como Ele deve ser crido dentro dessa mesma religião.
 No pensamento desse dinamarquês vamos encontrar vários conceitos para se falar de Deus. Os mais trabalhados pelo autor serão os nomes Absoluto e Paradoxo. Ambos são amplamente discutidos por Kierkegaard em Temor e Tremor e em Migalhas Filosóficas. Tendo esses temas como pano de fundo, para começarmos este capítulo faremos memória de uma prece kierkegaardiana, a qual revela a esperança frente ao desespero; o pensamento que sai da abstração para a concreção da vida em Deus, de modo que, as dores da vida sejam evanescidas pela esperança no Paradoxo.

Pai celeste! A ti se volta nosso pensamento. És tu quem ele procura de novo nesta hora, não com o passo incerto do peregrino extraviado, mas com o vôo seguro da ave que conhece bem o seu ninho. Não permitas, ó Deus que nossa confiança em ti se esvaeça como idéia fugaz, como o recurso de um momento ou as assegurações falazes deste coração carnal. Faze que em nós a nostalgia do teu reino e nossas esperanças de teu esplendor não sejam dores infecundas, nem sejam como nuvens sem chuva. Mas, como orvalho que dessedenta, atendidas, banhem nossos lábios, e, como o teu maná celeste, saciem-nos para sempre (KIERKEGAARD, 1990: 25).

Na obra Migalhas Filosóficas, sobre o pseudônimo de João Clímacus, Kierkegaard introduz a noção de Deus como sendo um Paradoxo e um Absurdo. Ele afirma que a busca para conhecer o Paradoxo, isto é, Deus deixa a existência numa contradição marcada pela paixão paradoxal da inteligência; contradição causada quando a paixão se depara com esse Desconhecido, que de fato existe embora permaneça desconhecido e inexistente. Nesta mesma obra, Soren usa sua dialética irônica, porque ele ao mesmo tempo em que afirma uma coisa logo em seguida nega-a. Isso porque esse Desconhecido é o Deus como mestre e salvador, o qual não é totalmente compreendido pela paixão paradoxal da inteligência; ficando preso no limite que há entre a paixão e o desconhecido pela própria inteligência humana. Esse pensador dinamarquês afirma sobre esse assunto o seguinte:

A inteligência não pode ir mais longe: mas o seu sentido do paradoxo leva-a a aproximar-se do obstáculo e a ocupar-se dele; porque, pretende exprimir a sua relação com ele negando a existência daquele desconhecido, não dá certo, visto que o enunciado desta negação envolve precisamente uma relação. Mas o que é então este desconhecido (pois dizer que ele é o deus significa simplesmente que ele é para nós o desconhecido)? Enunciando-se sobre ele que ele é o desconhecido, dado que não se pode conhecê-lo, e que, se mesmo assim se pudesse conhecê-lo, não se poderia enunciá-lo, a paixão não se dará por satisfeita, embora ela tenha captado corretamente o desconhecido como limite: mas o limite é justamente o tormento da paixão, ainda que ao mesmo tempo seu incitamento. E, no entanto ela não consegue ir mais adiante, quer ela arrisque uma saída via negationis, quer via eminentiae (KIERKEGAARD, 2008: 71).  

            O que busca a inteligência é romper limites; tornar o Desconhecido conhecido, a fim de que ela seja a suprema compreensão da concreção. Todavia, essa paixão movedora que a inteligência dispõe em si mesma é portadora do elemento paradoxal. Isso significa dizer que ao chegar ao limite do conhecimento almejado pela própria inteligência, ela percebe a presença do Paradoxo: estamos falando do Desconhecido, e, portanto, a razão não pode ir mais além do seu limite.  
            Nota-se que o Desconhecido tornar-se-á conhecido para logo em seguida voltar a ser novamente o desconhecido. Essa dialética será denominada por Kierkegaard de “paixão paradoxal da inteligência”. Esse jogo é dialético: compreende que o Desconhecido torna-se conhecido e existente para a inteligência que buscava essa realidade, mas ao debruçar-se sobre esse que agora é conhecido, o entendimento verá que o conhecido re-tornou-se a ser desconhecido e inexistente, isto é, o pensamento não consegue abarcar todo o Paradoxo que existe, mas apenas aproximar-se, quando o Paradoxo dá a condição que é a fé, sobretudo, porque, “a própria fé é um milagre, e tudo o que vale para o paradoxo vale também para a fé” (KIERKEGAAR, 2008: 95). Portanto, não é possível provar a existência de Deus historicamente, pois ao jogarmos esse jogo das palavras, ou seja, ao procuramos derivar o ser por meio do pensamento estamos eternizando, de certa maneira, o cômico[1].
            O pensamento sempre se esgota diante do inesgotável, por isso, Soren conceitua Deus como sendo o Paradoxo, isto é, como Aquele que não pode ser pronunciado totalmente, mas permanece desconhecido no limite entre a verdade e a não-verdade, de tal modo que, isso contribua para que o pensador subjetivo e o pensador objetivo venham a se confrontarem em seus modos de existência. É bom entender que, no caso do cristianismo, o discípulo é sempre a não-verdade em si; para que chegue à verdade em si é preciso que Deus a possibilite pela condição, isto é, a fé no Paradoxo desconhecido. Por isso:

Kierkegaard, por intermédio do seu pseudônimo Climacus, sugere que se dê a esse desconhecido o nome de “o deus”. Deste modo, Climacus confessa que Deus não é senão um nome e entende por esse “nome” uma denominação pura e simples para designar “a coisa desconhecida”, “o desconhecido” com o qual se depara o homem, radicalmente não simbolizável. Mas, se Deus é o limite da esfera do conhecido, o além do conhecido, toda a afirmação sobre Deus é nua de sentido. Há coisas que a linguagem não pode dizer e, se mesmo assim a linguagem fala sobre elas, estas se transformam em outra coisa, passando da “existência” à “abstração” do pensamento privado de referências, mas então a linguagem está desconectada do sentido, dado que este só pode ser existencial  (FARAGO, 2006: 201-202). 


[1] REICHMANN. Soren Kierkegaard: Textos Selecionados. 1971. Cômico é todo homem que não tem um interesse apaixonado infinito e, no entanto, quer persuadir os outros que tem este interesse por sua salvação eterna. 217 p.