sexta-feira, 3 de junho de 2011

Conceito de Homem



Temos o intuito de fazer uma abordagem sucinta da compreensão de homem e Deus pelas categorias de finitude e infinitude na filosofia de Kierkegaard. Analisaremos primeiramente a concepção de homem. Esse indivíduo é visto a partir de sua existência, dado no concreto da realidade vivida por ele. Uma concepção voltada para um ser que se confronta com os problemas mundanos que são também os seus problemas, pois esse se dá na possibilidade de suas escolhas. Na concepção kierkegaardiana o homem é um sujeito singular, que se dá como existência, não como gênero humano, mas especialmente como homem objetivo, que se subjetiva em sua realidade efetiva. Ele não é apenas consciência de consciência, mas um ser que se confronta consigo mesmo na medida em que vai tomando consciência do seu vir-a-ser. Não é apenas um ser racional, é, sobretudo, existencial. Kierkegaard está instituindo uma nova concepção de homem que encontra ecos na concepção cristã de homem.

Em semelhante altura o Cristianismo colocou cada homem, absolutamente cada homem – pois para Cristo, tampouco como para a providência de Deus, não há nenhuma quantidade, nenhuma multidão, pois os inumeráveis estão para ele contados, são todos indivíduos; tão alto o Cristianismo colocou cada homem, para que ele não devesse prejudicar sua alma por se elevar nas diferenças da vida terrena ou por suspirar sob elas. Pois o Cristianismo não fez desaparecer as diferenças, tampouco como o próprio Cristo não quis e nem quis pedir a Deus para retirar os discípulos do mundo – o que dá no mesmo. Por isso, no Cristianismo, tampouco como no paganismo, jamais viveu um ser humano sem estar vestido ou revestido das diferenças da vida terrena, que pertencem a cada um especialmente pelo nascimento, pelo estado, pelas circunstâncias, pela cultura etc. – nenhum de nós é o homem puro. O Cristianismo é sério demais para fabular a respeito do homem puro, ele apenas quer tornar os homens puros. [1]       

Percebemos as relações que existem entre o autor e o conceito cristão de homem, pois para o cristianismo segundo Sören, cada homem é visto de forma singular, dentro de suas características que lhe são intrínsecas. “O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, é, em suma, uma síntese. Uma síntese é a relação de dois termos”. [2] Sendo assim, Kierkegaard concebe o homem a partir de uma relação dialética entre a infinitude e a finitude[3], entre o atemporal e o temporal, onde ambos constituem o eu. Esse eu é o homem em sua interioridade, essa interioridade representa o voltar-se sobre si mesmo. É o homem tomar consciência de sua existência. Esse mesmo indivíduo é apresentado pelo autor em três estágios, o estético que diz respeito à relação do homem com o imediatismo, com o ser bem visto pelas outras pessoas sem se comprometer consigo mesmo. O ético se refere ao que a moralidade proibi, as normas prática de um povo, por fim, esse sujeito chega ao estágio religioso, onde nos relacionamos diretamente com o Absoluto, já não agimos pelo estético e nem pelo ético. 
 O homem kierkegaardiano é possuidor de uma essência eterna e temporal, isso significa dizer que ele é uma síntese estabelecida pela relação de infinitude e finitude. Nessa relação, cada um dos termos age interligado, pois a relação entra como um terceiro termo.       Os termos agem interligados conservando em si a autonomia de cada um. A autonomia representa a manifestação da infinitude na finitude e caso não houvesse a liberdade entre ambos os termos, o temporal perderia a noção do atemporal, sairia da eternidade para a temporalidade, teria a idéia de que todo real seria ele mesmo, o existir seria imediato, se concluiria no último ato da finitude, não havendo assim o eterno. A última manifestação do eu seria o fim de todo o existir. Essa liberdade entre os termos representa o desdobramento do eterno, pois nesse não há necessidade de anulação, uma vez que ele é causa de existir do imediato. 
No dar-se dessa relação entre os termos, chega-se a compreensão de que o homem se encontra num desespero[4] dual, ou seja, o de não querer ser ele próprio e de querer ser ele próprio. O desespero de não querer ser ele próprio acontece a partir do momento que o eu (homem) se percebe como si próprio, ele nega esse si, a relação com a finitude. Ele não se aceita como ser temporal, no sentido de possuir imperfeições, limitações que o impossibilitam de ter uma superação da sua própria fragilidade. Por si e só por si o desesperado dirá que não consegue se superar, cada vez mais se afundará no desespero. Enquanto negador do atemporal o eu, com o máximo de esforço, conseguirá um resultado ilusório.
Quando ele aceita a si mesmo (infinito e finito), essa dependência da relação, ele se reconhece como ser imperfeito e limitado, que não é possível ao eu, por vontade própria, conseguir a harmonia e a tranqüilidade. Essa aceitação não é uma maneira especial de desesperar, pelo contrário, é nela que o desespero se resolve, e a ela se reduz. Isso porque, o desespero não é uma manifestação exterior que poderia ser resolvida por soluções exteriores, mas sim, é um fenômeno interior que só pode ser resolvido por uma força de vontade, por um desejo imanente da interioridade, que Kierkegaard denominará de fé.  É nessa afirmação do eu, nesse re-conhecer-se como eterno que surge o desespero do reconhecimento de si.
Caso não aconteça esse reconhecimento de si, pois ele nem sempre é aceitável porque gera dor e mal estar à medida que vamos conhecendo-nos como seres duais. Somos seres com possibilidades e com impossibilidades de sermos felizes, com isso nos sentimos ameaçados, entramos num estado de inconformidade, tudo parece sem sentido, portanto, buscamos no imediatismo uma resposta que supra nossas necessidades.
Qual é a maior ameaça que pesa sobre o homem se não o próprio homem? O homem é sua própria ameaça porque a todo instante ele combate consigo mesmo, sendo seu próprio exército e seu inimigo.  A todo o momento está se auto - destruindo na perspectiva de possuir uma nova personificação. O eu olha para si e não se reconhece ou não se aceita ele olha para a exterioridade e a partir dela, almeja construir uma idéia real, mas o real não pode vir do ilusório, e nisso o desesperado se desespera, pois o seu sonho se fez fracasso. O fracassar leva o indivíduo a um incompreensível desespero, porque ele tem de se sujeitar ao insucesso.
            Esse processo desesperado frente ao fracasso, consiste no imediatismo que somos. Enquanto formos delimitados por essa existência viveremos esse mal, porque no dar-se ao mundo somos impelidos a nos confrontarmos com nossas escolhas que são inerentes a todo ser homem. Portanto, o desespero não é privilégio do homem pagão ou do homem cristão, mas de ambos. Todo homem traz em si o desespero, porque todo ele é resultado de uma síntese. Mesmo o homem inconsciente do desespero que lhe habita, na sua interioridade há certa inquietação, um certo receio, uma sensação de perda, uma desarmonia. Por traz de tudo isso há um desconhecido que ele nem ousa conhecer, que no fundo é o desespero.

Assim como talvez não haja, dizem os médicos, ninguém completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que nem um só existe que esteja isento de desespero, que não tenha lá no fundo uma inquietação, uma perturbação, uma desarmonia, um receio de não se sabe o quê de desconhecido ou que ele nem ousa conhecer (...) um receio de si-próprio.[5] 

            Nesse sentido todo homem é habitado pelo desespero, o mesmo é atravessado até o íntimo do seu ser por essa doença, sua presença é tão real quanto seu ser-no-mundo. Não há no homem por mais profundo que seja um lugar que essa enfermidade não alcance. Mas nesse mesmo sujeito singular, há nele uma outra existência, uma Infinitude que lhe habita e que é causa da superação desse mal desconhecido. Deus é a Infinitude presente no indivíduo, O qual rompe com a relação homem-desespero, dando ao sujeito a garantia da felicidade plena que entendemos como o estágio religioso, no caso do cristianismo a vida eterna. 



[1]KIERKEGAARD, Sören. As Obras do Amor. Trad. Álvaro L. M. Valls. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2005. P. 91
[2]KIERKEGAARD, Sören. Desespero a Doença Mortal. Trad. Ana Keil. Porto – Portugal: Rés, 1989. P.12
[3] Quando usamos o termo infinitude estamos falando de um ser que está para além do mero existir, um sujeito que tem sua existência na atemporalidade, que se relaciona direto com o eterno. Esse termo entra numa abordagem teológica. Já o termo finitude é o oposto. Mas ele não deixa de relacionar-se com o eterno. Esse finito busca superar o imediatismo para se lançar na infinitude de seu ser.  Esse termo tem uma conotação antropológica. Pois Kierkegaard pretende fazer uma analise teológico-antropológica da existência do homem na sua filosofia. Para ele, o homem tem a necessidade de ultrapassar a mera realidade uma vez que ela não lhe confere sentido mais profundo, e nisso se lança na busca de uma transcendência de si mesmo.
[4] O desespero é uma enfermidade, uma doença mortal. Essa enfermidade é inerente ao ser, possibilita a tomada de consciência de sua existência. Ele se dá pela relação que o homem estabelece consigo próprio. Ele se vê frente a sua possibilidade de efetuação no mundo.
[5]  Ibidem. P.25 

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