quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O Esteta, o Ético e o Religioso


Quando pensamos nas existências estética e ética, o sofrimento, com efeito, não é algo necessário, de modo que, o desespero não passa de uma transição para um outro momento da vida, podendo muito bem viver sem vivê-lo. Para o homem religioso, o desespero não é uma exceção, mas fator decisivo para tal estágio, pois ai revelar-se-á a sua interioridade, sua subjetividade de forma concreta, caso contrário, Abraão não teria se tornado um cavaleiro da fé. Quando o homem reconhece seu sofrimento, isto é, que a existência comporta desafios, depara-se com o incógnito que há em sim mesmo, por isso “quanto mais sofrimento mais vida religiosa e o sofrimento permanece” [1] (REICHMANN, 1971, p. 55).

O prazer que o esteta tanto buscou como fundamento de sua existência não confere nada mais do que o gozo em si mesmo, a escassez de uma verdade eterna, em semelhante postura nos deparamos com o ético, este essencialmente se relaciona com o dever para com o geral. Ambos sofrem a “transubstanciação” causada pela angústia compreendida pelo Cavaleiro da fé. Se agíssemos pelas esferas da razão estética e moral poderíamos chegar ao pressuposto de que, “não é a verdade que governa o mundo, mas as ilusões” [2].
 A razão estética e ética são indivíduos sistemáticos, movidos em suas tagarelices, muito elogiados pelo geral; suas lógicas são profundamente coerentes. Kierkegaard em sua ironia chega a elogiar tais homens na pessoa de Hegel, afirmando que o sistema hegeliano é um prodígio, e que os que conseguem comparar-se a esse alemão merecem toda reverência possível, mas preocupar-se com Abraão é uma perca de tempo, pois nada nele é atraente, sendo ele mesmo obscuro e paradoxal, mas uma vez vemos a ironia kierkegaardiana exalar sua peculiaridade. Ele ironiza esses modos existenciais da seguinte maneira:

Compreender Hegel deve ser muito difícil, mas a Abraão, que bagatela! Superar Hegel é um prodígio; mas que coisa fácil quando se trata de superar Abraão! Pela minha parte já despendi bastante tempo para aprofundar o sistema hegeliano e de nenhum modo jugo tê-lo compreendido; tenho mesmo a ingenuidade de supor que apesar de todos meus esforços, se não chego a dominar o seu pensamento é porque ele mesmo não chega, por inteiro, a ser claro. Sigo todo este estudo sem dificuldade, muito naturalmente, e a cabeça não se ressente por isso. Mas quando me ponho a refletir sobre Abraão, sinto-me como que aniquilado. Caio a cada instante no paradoxo inaudito que é a substância da sua vida; a cada momento me sinto rechaçado, e, apesar de seu apaixonado furor, o pensamento não consegue penetrar este paradoxo nem pela espessura dum cabelo. Para obter uma saída reteso todos os músculos: instantaneamente sinto-me paralisado [1] (KIERKEGAARD, 1979b, p. 127).

Tais heróis trágicos são passíveis de penetrar seus pensamentos, ao contrário, não o de Abraão, porque nele encontra-se um paradoxo, o qual reafirma a decisão do homem frente às coisas contingentes; essas se compreendem a si mesmas em suas finitudes, enquanto que, a fé é sempre uma possibilidade que há por vir, escondida em um segredo, pois, justamente, a “essência da fé consiste em ser um segredo, em ser para o indivíduo; se a fé não é conservada como um segredo por cada indivíduo, mesmo quando ele a confessa, então este não crê, de maneira nenhuma” [2] (KIERKEGAARD, 2005a, p. 44).

Mas onde está o desespero do patriarca? Sua angústia? Como ele relaciona-se com Deus? É verdade que o desespero é inerente a todo homem, mas no caso de Abraão, seu estado de enfermidade, essa angústia dá-se na reflexão sobre si mesmo e sobre Deus pela categoria da fé. É no estágio religioso que o homem Abraão, e todos os demais homens, podem entender o significado máximo da existência. Porque, desperta para si na compreensão de que o ato de existir exige que o sujeito esteja a todo tempo dando sentido a concretude da vida. Que esse homem transmutável, des-personificado pelas emaranhadas contingências dadas na angústia da vida, tenha a capacidade de se reconduzir para conhecer-a-si-mesmo no contato com a infinitude. 



[1] KIERKEGAARD. Temor e Tremor. 1979.126 – 127 p.
[2] KIERKEGAARD. As Obras do Amor. 2005. 44 p.



[1] REICHMANN. Soren Kierkegaard: Textos Selecionados. 1971. 55 p.
[2] Ibidem. 62 p.

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