quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Estágio Estético


O homem kierkegaardiano é possuidor de uma essência eterna e temporal, isso significa dizer que ele é uma síntese estabelecida pela relação de infinitude e finitude. Nessa relação, cada um dos termos age interligado, pois a relação entra como um terceiro termo. Os termos agem interligados conservando em si a autonomia de cada um. A autonomia representa a manifestação da infinitude na finitude e caso não houvesse a liberdade entre ambos os termos, o temporal perderia a noção do atemporal, sairia da eternidade para a temporalidade; teria a ideia de que todo real seria ele mesmo; o existir seria imediato; concluir-se-ia no último ato da finitude, não havendo assim o eterno. A última manifestação do eu seria o fim de todo o existir. Essa liberdade entre os termos representa o desdobramento do eterno, pois nesse não há necessidade de anulação, uma vez que ele é causa de existir do imediato.
Nesse imediato, o homem estético encontra o desespero de si, sua angústia , pois tudo o que efetua tem um tom de eternidade, lança-se no Temor e Tremor para conseguir seus objetivos, e assim, não se torna Indivíduo “em virtude de uma decisão pessoal” , mas ao contrário, decide-se em relação ao desejo de ser reconhecido pelo geral, pela multidão . Desse modo “a postura que o esteta mantém é a de finitude, já que vive preso às infinitas possibilidades, sem a realização concreta de umas delas, ele simplesmente percebe o mundo do possível, mas não é capaz de responder a ele” (OLIVEIRA, 2004: 6).
Esse aspecto do esteta reflete-se no existir-paradoxal e efetua-se no que Kierkegaard denomina como desespero. Noutra releitura pós kierkegaardiana, esse desespero aparece como desespero-estético. Isto é, um momento em que o indivíduo não se fundamenta em nenhum ato de eternidade, ficando pendente na esfera do imediatismo, acreditando numa não-verdade, em um engano de si mesmo, onde “a perda é irreparável” . Desse modo, o desespero, enquanto, angústia que é a condição humana em suas infinitas escolhas, mas limitada pela objetivação finita do indivíduo, acontece no dar-se dessa relação entre os termos. O homem encontra-se num desespero dual, ou seja, o de não querer ser ele próprio e de querer ser ele próprio. O desespero de não querer ser ele próprio acontece a partir do momento em que o eu (homem) percebe-se como si próprio e, nega a si mesmo, sua relação com a finitude. Ele não se aceita como ser temporal, no sentido de possuir imperfeições, limitações que o impossibilitam de ter uma superação da sua própria fragilidade.
Quando o indivíduo aceita a si mesmo (infinito e finito), como dependente dessa relação, ele se reconhece como ser imperfeito e limitado. Essa aceitação não é uma maneira especial de se desesperar, pelo contrário, é nela que o desespero se resolve, e a ela se reduz. Isso porque, o desespero não é uma manifestação exterior que poderia ser resolvida por soluções exteriores, mas sim, um fenômeno interior que só pode ser resolvido por uma força de vontade, por um desejo imanente da interioridade, que segundo Kierkegaard se revela como fé. É nessa afirmação do eu, nesse re-conhecer-se como eterno que surge o desespero do reconhecimento de si.
Somos seres com possibilidades e com impossibilidades de sermos felizes e para isso precisamos dar sentido às coisas sempre. Com isso, nos sentimos ameaçados; entramos num estado de inconformidade, onde tudo parece sem sentido e, assim sendo, buscamos no imediatismo estético uma resposta que supra nossas necessidades.
Uma categoria importante do estágio estético é o reconhecimento. Seu ato deve ser sempre cultuado como o mais elevado de todos os demais. Sua atuação nos palcos do mundo tende a ser constituída por representações; não há nenhum sinal de eternidade, senão, a negação da verdade que existe no indivíduo, ou seja, a paixão pela sua beatitude eterna, pois “o cristianismo é espírito, o espírito é interioridade, a interioridade é subjetividade, a subjetividade é essencialmente paixão e (...) paixão que sente um interesse pessoal infinito por sua beatitude eterna” (REICHMANN, 1971: 213).
Porque a estética tem a pretensão de considerar o herói trágico como um lutador corajoso, que durante décadas esforçou-se por dá sempre o melhor de si, e assim construiu o que de mais belo poderia existir num ato humano e, mediante isso, todos devem aplaudi-lo e chorar de comoção com seu belo ato heróico. Nesse caso, a estética sempre busca e se propõe a fazer do tempo um caso omisso, transportando o indivíduo sempre ao atemporal cristalizado e efêmero, e imediatizando o eterno a todo custo.
No livro As Obras do Amor, Kierkegaard faz uma descrição interessante de como o “poeta e o Cristianismo explicam exatamente o contrário” o deves amar dizendo que “o poeta a rigor não explica nada, pois ele explica o amor e amizade – em enigmas, ele explica o amor e amizade como enigmas, mas o Cristianismo dá a explicação eterna do amo.” (KIERKEGAARD, 2005a: 70). Isso para dizer que o estágio estético é um enigma, onde o homem não compreende, não vive em função do conhecer-a-si-mesmo na existência-paradoxal, mas desvanece no seu silêncio interior, permanecendo indiferente, onde o geral é a fonte que lhe deve fornecer a significação do que ele é de fato. Esse persistir no dever que a multidão lhe impõe é ficar à mercê de uma existência pensante, pois tudo o que acredita é o que o seu cogito determina como utopia. E talvez seus atos não sejam reconhecidos como queria, isso porque, o esteta imaginou uma conclusão, mas o geral deu-lhe outro significado para aquilo que foi projetado de antemão. As conseqüências nem sempre podem ser determinadas pela aspiração do poeta, pois o julgamento é sempre dependente do outro indivíduo quando se está na dependência da vida estética.
Mediante essa abstração, sem ter passado por uma suspensão teleológica, o esteta, isto é, o herói trágico nos induz à seguinte pergunta. Qual é a maior ameaça que pesa sobre o homem senão o próprio homem? A resposta é: O homem é sua própria ameaça porque a todo instante ele combate consigo mesmo, sendo seu próprio exército e seu inimigo. A todo o momento está se auto-destruindo na perspectiva de possuir uma nova personificação. O eu olha para si e não se reconhece ou não se aceita; olha para a exterioridade e a partir dela almeja construir uma idéia real, mas o real não pode vir do ilusório, e nisso o desesperado se desespera, pois o seu sonho se fez fracasso. O fracasso leva o indivíduo a um incompreensível desespero, porque ele tem que se sujeitar ao insucesso.
Esse processo desesperado frente ao fracasso consiste no imediatismo que somos. Enquanto formos delimitados por essa existência viveremos esse mal, porque no dar-se ao mundo somos impelidos a nos confrontarmos com nossas escolhas que são inerentes a todo ser humano. Portanto, o desespero não é privilégio do homem pagão ou do homem cristão, mas de ambos. Todo homem traz em si o desespero, porque essa angústia é resultado de uma síntese. Mesmo o homem inconsciente do desespero que lhe habita, traz em sua interioridade uma certa inquietação, um certo receio, uma sensação de perda, uma desarmonia. Por trás de tudo isso há um desconhecido que ele nem ousa conhecer, que no fundo é o desespero.
"Assim como talvez não haja, dizem os médicos, ninguém completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que nem um só existe que esteja isento de desespero, que não tenha lá no fundo uma inquietação, uma perturbação, uma desarmonia, um receio de não se sabe o quê de desconhecido ou que ele nem ousa conhecer (...) um receio de si - próprio" (KIERKEGAARD, 1989: 25).

Nesse sentido todo homem é habitado pelo desespero; ele é atravessado até o íntimo do seu ser por essa doença; a presença do desespero é tão real quanto seu ser-no-mundo. Não há no homem por mais profundo que seja um lugar que essa enfermidade não alcance. Mas nesse mesmo sujeito singular, há uma outra existência, uma Infinitude que lhe habita e que é causa da superação desse mal desconhecido. Essa infinitude é Deus presente no indivíduo, através dessa presença rompe-se a relação homem-desespero, dando ao sujeito a garantia da felicidade plena e o alcance do estágio religioso, no caso do cristianismo, a vida eterna; isto é, a felicidade eterna prometida pelo cristianismo. O significado pleno dessa felicidade acontece na suspensão da existência real, pois nessa existência o homem aprende a conviver com o desespero graças ao estágio religioso.
Enquanto essa suspensão da existência não acontece nem pelo ético e nem pelo religioso, estando ainda preso ao estágio estético, o indivíduo se vê jogado na vertigem da liberdade, na angústia “que nasce quando, ao querer o espírito instituir a síntese, a liberdade mergulha o olhar no abismo das suas possibilidades e se agarra à finitude para não cair” (KIERKEGAARD, 1979a: 93).
Nessa síntese da angústia que ocorre nas possibilidades da finitude, Kierkegaard critica o sistema hegeliano por não reconhecer que o pensamento puro, livre do ato existencial, sem compreender o paradoxo da vida não passa de uma quimera; e nesse caso a lógica de Hegel não passa de objeções, não contribui em nada com o essencial do existir real.
Como fará o homem para superar o desespero de si é o grande questionamento desse filósofo dinamarquês, pois se é verdade que o conhecimento absoluto resulta em algum benefício existencial, até o momento não temos provas reais de que alguém tenha se curado dessa doença mortal. O que Soren questiona não é o fato de se fazer no interior do pensamento puras objeções, especulações objetivas, mas sim o fato de suprimir a realidade por meio do pensamento abstrato, por conseguinte, “todo pensamento lógico limita-se à linguagem da abstração e é sub specie aeterni. Pensar logicamente a existência significa fazer abstração da dificuldade que há em pensar o eterno no devir, a que se está obrigado, pois aquele que pensa está ao mesmo tempo no devir” (REICHMANN, 1971: 226).
Acrescenta Kierkegaard que a filosofia de Hegel não leva ninguém ao conhecimento existencial de si mesmo, uma vez que esse é causa para outros conhecimentos, portanto, “o grande erro de Hegel é que o autor alemão se esquece, ao escrever, de que é uma pessoa real e age como se não tivesse existência... abrindo mão de sua real condição de pessoa existente” (PAULA, 2009: 29).
Mediante essa crítica ao sistema hegeliano, o “sistema kierkegaardiano” ou o “corpus kierkegaardiano” observará que o estético renuncia a si mesmo enquanto indivíduo para perder-se na idéia, “o estético espera que tudo venha de fora; seu relacionamento com o mundo é basicamente passivo, e sua satisfação fica sujeita, afinal, à condição cuja satisfação independe de sua vontade” (GARDINER, 2001: 53). Isso porque sua existência deixa de ser paradoxal, tende a tornar-se uma contradição em si mesma, retirando o fato de existir da realidade e transformando-o no cogito ergo sun. Ora, se o cogito é postulado sempre na esfera da idéia, sua busca pela categoria do reconhecimento torna-se infinita, o que lhe resta é apenas a opinião alheia que insiste em julgar seus atos como heróicos ou não. A estética fica assim apenas na aparência do ser, só reconhecendo seus atos; não leva em conta e não é do seu interesse o mero fato de existir, senão apenas os efeitos cômicos do indivíduo.
Para ir de encontro a essa perspectiva, esse autor, ao abordar o conceito de amor, enfatiza o seguinte:

"O desespero consiste em relacionar-se com algo de particular com infinita paixão; pois com paixão infinita só se pode, se não estiver desesperado, relacionar-se com o eterno. O amor imediato é assim desesperado, porém quando se torna feliz, como se costuma chamar , o fato de que ele está desesperado se oculta a ele, e quando ele se torna infeliz, torna-se manifesto que ele estava desesperado. Ao contrário, o amor que passou pela transformação da eternidade em se tornando dever, jamais pode desesperar, justamente porque ele não é desesperado" (KIERKEGAARD, 2005a: 58).

A falta do eterno no estágio estético torna ilusório o desespero, uma tentativa vã de eliminar essa doença mortal, e assim eterniza a angústia ocultamente. Sua manifestação é liberada apenas no puro pensamento absoluto, e com isso, o homem perde a possibilidade de unificar sua personalidade, permanecendo preso ao que lhe resta; à infelicidade e à dor de não ser reconhecido, e mesmo que seja reconhecido, esse fenômeno não passa de um imediatismo assombroso, fantasmagórico, isso porque, depois de alguns momentos, tudo será esquecido assim que surgir um novo herói trágico; tudo não passou de uma vã ilusão.
Esse pensador dinamarquês vê nesse estágio estético o desespero de não querer ser ele próprio e ao mesmo tempo de querer ser. O primeiro caso está ligado ao fato de não ter construído uma relação com o eterno, ao contrário, buscou na multidão o desejo de ser reconhecido por ela como algo infinito; pensou que era possível satisfazer-se nas coisas ordinárias, mas isso devido ao fato de poder transformá-las em extraordinárias, ou seja, criou uma estrutura imaginária totalmente fundamentada em conceitos idealistas; esqueceu-se de compreender a si mesmo enquanto individuo subjetivo; passando a objetivar-se nas opiniões postuladas pelo geral. Ambos os casos se resumem nas expressões quantitativa e qualitativa. Esta corresponde ao subjetivismo existencial, aquela ao acumulo de opiniões omitidas pela exterioridade da coisificação da realidade.
No desespero-estético lhe importa para sua breve alegria – que no fundo é uma melancolia assustadora – que o conceito lhe diga quem ele é, pois é este que deve tornar-lhe eterno, embora não passe de uma abstração da existência, e isso nada mais é do que negar a existência real, porque carece do eterno.
No segundo caso, o desespero-estético, ao querer ser ele próprio entra noutra problemática, tanto conceitual como existência-paradoxal. É nesse tanto como que está a expressão ou o terceiro elemento de uma trilogia, isto é, o inter-esse, pois o indivíduo fica jogado nesse espaço do tanto como, restando-lhe a escolha, a decisão; é preciso decidir. A partir do momento em que há a consciência da verdade, ou seja, da existência-paradoxal temos a tendência de conceituarmo-nos, dizer o que achamos de nós mesmo, e de ficarmos dependente de como nos conceituam, porque esse conceito deve ser efetuado no nada concreto; por isso entendemos a condição de ser paradoxal. Ao som da expressão: é preciso decidir, após a vivência do desespero-ético, Kierkegaard vê o ponto fundamental para o indivíduo tornar-se um cavaleiro da fé.
Ao som de “é preciso decidir”, o indivíduo deparar-se-á com inúmeras possibilidades de escolhas. Verá que o geral é uma aglomeração de indivíduos, onde não há rosto, mas apenas um volume, uma quantidade que afirma a objetividade e nega a subjetividade. Mas ao olhar para si mesmo enquanto indivíduo subjetivo, confrontar-se-á com o que lhe é mais estranho, sua própria subjetividade. Sua subjetividade lhe é estranha porque ele ainda não se reconhece e porque lhe foi negado pela filosofia moderna, existir antes de pensar. Essa filosofia, segundo Kierkegaard, erra ao dizer que o indivíduo deve tornar-se objetivo, que a ciência deve explicar objetivamente a verdade da existência-paradoxal. Em contra partida, o elogio kierkegaardiano dirige-se ao Cristianismo, o qual ensina que a paixão é subjetiva e que não existe objetivamente, isto é, que a fé deve tornar-se subjetiva. O homem deve buscar essa verdade subjetivamente; eis a tarefa mais elevada a todos os seres humanos. A fé é entendida como possibilidade onde fica o inter-esse para a suspensão do telos do desespero-estético.

2 comentários:

  1. Eu gostaria de saber que relação tem a experiência da vida na infância com p estágio estético de que fala Kierkgaard? O estágio estético é a primeira fase da vida onde beleza, prazer, bondade são vivencias interessantes. A psicologia infantil explica mas deixa a desejar.

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    1. Suponho que os que escreveram sobre o estágio estético eram adultos falando de um ponto de vista de uma idade mais madura longe da experiência de uma criança que ainda não sabe verbalizar bem o que vivencia enquanto vai sendo levada para o mundo do conhecimento ético moral. A ternura humana ainda não é para a criança essência da religião ou ciência.

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